Um plano de recuperação
O Conselho da União Europeia aprovou, em 21 de julho de 2020, o maior programa de recuperação econômica da história desse bloco. Trata-se do Next Generation EU (NGEU), um fundo de 750 bilhões de euros inteiramente dedicado à reconstrução e modernização da economia europeia, no cenário complexo e difícil da pós-pandemia.
Alguns já o definiram como um novo Plano Marshall, só que, dessa vez, um plano inteiramente europeu, financiado com recursos próprios. Somado a um robustecido orçamento da UE, que ascende a 1,7 bilhão de euros, esse bloco disporá de 1,8 trilhão de euros para gastos e investimentos até 2027.
Tal como o Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil, lançado pelo PT em setembro de 2020, o NGEU, somado ao orçamento da UE, combina objetivos de curto, médio e longo prazos. O objetivo emergencial é o de ajudar os estados membros a reparar os danos econômicos e sociais imediatos causados pela pandemia do coronavírus.
Mas ele também visa auxiliar a transição verde, a transformação digital, o crescimento e geração de empregos inteligentes, sustentáveis e inclusivos, a coesão social e territorial, a saúde e a resiliência e as políticas para as próximas gerações, incluindo o aprimoramento da educação e a geração de inovação.
Dessa forma, o grande objetivo de longo prazo é o de modernizar a economia europeia, criar bases sociais e ambientais para o novo desenvolvimento e preparar a UE para os desafios do futuro.
Para tanto, mais de 50% dos recursos serão gastos como pesquisa e inovação, via o Horizon Europe; clima e transições digitais, por meio do Just Transition Fund; preparação, recuperação e resiliência mediante o Centro de Recuperação e Resiliência. Ademais, haverá novo programa de saúde, o EU4Health, destinado a preparar a Europa a lidar com desafios epidemiológicos.
Estamos diante, portanto, de uma grande reviravolta, em relação às políticas de austeridade, implantadas na UE desde 2008, as quais não produziram os resultados esperados e, ao contrário, subsumiram algumas economias do bloco, como a da Grécia, em grandes tragédias sociais e humanitárias.
Assim, a imposição do austericídio às economias mais frágeis da Europa, impulsionado grandemente pela Alemanha, após a grave crise de 2008, é agora substituída por uma nova política contracíclica, fundada na solidariedade e no resgate do papel do Estado e das instituições comunitárias como instrumentos fundamentais do enfrentamento da crise da pandemia e da construção de economias e sociedades mais competitivas, modernas, justas e ambientalmente sustentáveis.
Diga-se de passagem, se as rígidas políticas de controle orçamentário e fiscal da UE tinham, por assim dizer, a cara da conservadora Angela Merkel, o NGEU tem a marca de Olaf Schloz, o futuro novo chanceler alemão, que participou da elaboração e negociação do plano, desde o seu início.
Obviamente, essa impressionante guinada política da UE não ocorreu por acaso. Tampouco se deu por meras mudanças conjunturais e políticas em poucos países. Na realidade, é resposta a uma série de desafios estruturais que vem se acumulando no interior do bloco europeu há muito tempo.
Por isso, dessa vez, as economias mais dinâmicas do norte europeu e os chamados países “frugais” (Holanda, Dinamarca, Áustria e Suécia), que têm déficits muito baixos, concordaram com a emissão coletiva de uma dívida, contraída via euro bonds, para constituir o fundo NGEU. Esses países também concordaram que 390 bilhões de euros desse fundo fossem disponibilizados via meras transferências.
O novo ímpeto de solidariedade europeia foi despertado por vários fatores. Em primeiro lugar, está o tamanho da atual crise. A economia da União Europeia sofreu uma queda de 6,3%, em 2020, após anos de crescimento baixo — 1,6%, em 2019. Essa queda foi bem maior que a verificada nos EUA (-3,5%) e Japão (-4,8%). Alguns países da UE, como Itália, Suécia, Bélgica e Espanha estão entre os mais afetados pela crise sanitária e ainda hoje têm dificuldades em recuperar o dinamismo econômico pré-crise. O fato de que muitos países da UE têm perfil demográfico bastante envelhecido contribui para gerar um impacto maior da Covid-19.
Em segundo, está a assimetria do impacto da crise da Covid-19. A crise da pandemia afetou de forma desproporcional a economia dos países do sul da Europa, especialmente de países que dependem muito do turismo, como Espanha (-11%), Portugal (-7,6%), Grécia (-7,8%), Itália (-8,9%) etc. Também afetou mais os países que possuem muitos pequenos negócios.
Esse impacto desproporcional acentuou uma tendência, que já havia se consolidado desde a crise de 2008, de aumento das desigualdades entre os países do norte e sul da Europa.
Isso cria um grave problema estrutural de coesão interna da UE, que tem como estratégia de integração justamente a convergência das economias. A integração europeia, que visa, em última instância, a construção de uma cidadania comunitária, não pode ser sustentada, se há aumento das assimetrias entre os países.
Um terceiro fator, estreitamente ligado ao segundo, é o Brexit. De fato, a saída do Reino Unido da UE foi um grande trauma para o bloco e acendeu uma gigantesca luz vermelha sobre os seus rumos. Criou-se um grande temor de que o Brexit se convertesse na primeira de uma série de defecções, à medida em que as assimetrias e os conflitos interno do bloco se acentuassem. Ficou claro que a UE tinha de investir em coesão interna.
O quarto fator tange à natureza da crise. Em 2008, os economistas conservadores podiam alegar que os países que apresentavam os maiores déficits e dificuldades tinham de arcar com as consequências de terem sido “gastadores” e mal gerido as suas finanças. Tinham, por conseguinte, de praticar rígidas políticas de austeridade fiscal e controle orçamentário para voltarem ao “normal”.
Dessa vez, no entanto, isso não pode mais ser alegado. A crise da Covid-19 é claramente uma crise que obedece fundamentalmente a fatores exógenos. Não tem nenhuma relação direta com algum suposto descontrole orçamentário e fiscal. Os governos responsáveis simplesmente foram obrigados a praticarem lockdowns e o distanciamento social, bem como a aumentarem os gastos com saúde, subsídios às empresas e assistência social para salvar vidas.
Ao contrário do que aconteceu e acontece no Brasil, na UE, ou na maior parte dela, entende-se que é obrigação comunitária e nacional salvar vidas e proteger a população dos piores efeitos da crise.
Um quinto fator, de grande peso, se relaciona ao fato de que a Estratégia de Lisboa não vem funcionando a contento e que a economia da UE está perdendo competitividade.
Com efeito, a União Europeia adotou, em 2000, na cidade de Lisboa, uma agenda de desenvolvimento estratégico com o objetivo de transformar-se na “economia baseada no conhecimento mais dinâmica e competitiva do mundo, capaz de garantir um crescimento econômico sustentável, com mais e melhores empregos, e com maior coesão social”. Para a UE, o conhecimento tornou-se a “maior riqueza das nações, companhias e pessoas”. Assim sendo, o desenvolvimento em pesquisa, inovação e educação, o tripé da economia baseada no conhecimento, bem como em tecnologias que promovem a inclusão digital, é lá considerado primordial.
Contudo, a crise de 2008, combinada posteriormente com as políticas de austeridade fiscal, esterilizaram esforços para realizar essa estratégia fundamental para o futuro da Europa.
À insuficiência na realização dessa estratégia de desenvolvimento, somaram-se dois novos grandes desafios estruturais: a emergência ambiental e a ascensão da China.
Não há mais dúvida, no mundo não-negacionista, de que as mudanças climáticas representam o maior desafio planetário e que qualquer processo de desenvolvimento terá de ser, necessariamente, ambientalmente sustentável. Por conseguinte, o NGEU coloca grande ênfase na chamada “transição verde”.
Já a ascensão meteórica da China, tanto do ponto vista econômico-comercial, quanto tecnológico e geopolítico, exige que a UE faça um grande esforço para inserir-se exitosamente num cenário internacional inteiramente diverso do que verificava há poucos anos, quando a aliança com os EUA parecia suficiente para lhe assegurar uma posição confortável.
Muito embora essa ascensão da China se constitua num desafio, ela é também uma oportunidade, pois o conflito daquele país com os EUA, poderia abrir espaços para a UE. De fato, a UE já deixou claro que quer ter uma relação pragmática com a China. E também com a Rússia, como revela o projeto do gasoduto Nord Stream 2 estabelecido entre Bruxelas, Berlim e Moscou.
Mas, além desses fatores bem conhecidos, há um outro fator, talvez o mais importante, que estimulou essa nova política da União Europeia.
Trata-se do fator político, ou, mais especificamente, da necessidade de proteger as democracias da Europa.
Há uma enorme preocupação, entre as forças democráticas europeias, com o crescimento da extrema direita e com o surgimento do mal denominado “populismo de direita”, que levou ao poder figuras autoritárias e xenófobas, como Orban da Hungria.
Esse fenômeno é visto como uma grave ameaça às democracias europeias e à própria coesão do bloco. O Brexit, por exemplo, foi impulsionado por forças da direita britânica, que investiram em fake news e em racismo e xenofobia contra imigrantes, para aprovar a saída do Reino Unido do bloco.
Pois bem, a UE entende, corretamente, que, para enfrentar esse grave fenômeno, é necessário se investir na sustentabilidade social e ambiental, na geração de empregos decentes, na convergência estrutural das economias, na correção das assimetrias e na coesão do bloco.
A preocupação com a democracia é tanta, que foi colocada cláusula no NGEU, pela qual apenas países que respeitem estritamente as regras democráticas poderão sacar recursos dos fundos criados.
Desse modo, fica claro que, para a UE, ou boa parte dela, o neoliberalismo e as políticas de austericídio a ele associadas fragilizam, especialmente nessa quadra difícil, as democracias e tendem a alimentar movimentos de extrema direita. Somente políticas contracíclicas robustas, apoiadas no papel do Estado, poderão criar bases estruturais estáveis para as democracias.
O neoliberalismo é o cemitério das democracias.
Não há dúvida de que essa nova grande política europeia tende a recolocar a UE no rumo correto da igualdade social, da coesão, da sustentabilidade ambiental, da geração de inovação e empregos decentes e de democracias estáveis e inclusivas.
Ela se soma ao Plano Biden, apontando imprescindível correção de rumos para o mundo, neste desafiador e complexo cenário pós-pandemia.
No Brasil de Bolsonaro/Guedes, contudo, continua-se a se apostar não em um Next Generation, mas em um Old Generation: a insistência obtusa em anacrônicas políticas neoliberais e austericidas, que comprovadamente só resultam em estagnação, dependência e aumento da desigualdade, da fome e da miséria.
Pior: que alimentam e aprofundam a crise da democracia brasileira, fortemente ameaçada por Bolsonaro. Afinal, historicamente o fascismo se nutre de crises econômicas, sociais e políticas. Desesperança e caos o favorecem.
Em 2022, somente as forças que apresentarem programas semelhantes aos já apresentados pelo PT, por Biden ou como a esse da UE poderão ser consideradas verdadeiramente democráticas. Verdadeiramente modernas. Verdadeiramente patrióticas. Verdadeiramente portadoras de futuro.
O resto, com Bolsonaro ou “terceira via”, nada mais será do que projeto anacrônico e reacionário para transformar o Brasil num grande, atrasado, dependente, iníquo, desmatado e autoritário “fazendão”.