Jair Bolsonaro será lembrado não apenas como o pior presidente da história do Brasil, mas também o responsável por uma política exterior desastrosa que isolou o Brasil internacionalmente e lançou o país na irrelevância nos mais variados tabuleiros geopolíticos do sistema internacional.

Desde a vitória bolsonarista na eleição presidencial de 2018, apesar das desconfianças e da perplexidade com a heterodoxia da nova orientação da “política exterior” do país, muito pagaram para ver. Políticos, diplomatas, militares, acadêmicos e empresários imaginaram que a realidade iria servir como barreira natural de contenção para as aventuras inconsequentes que se insinuavam desde a campanha. A esperança era a de que o pragmatismo acabaria predominando sobre a ideologia e a frívola proposta de política externa que foi apresentada à Nação quase como um rodapé no programa do então candidato.

O que se colocou em marcha, contudo, foi um festival de rupturas paradigmáticas nos cânones da política externa e, consequentemente, a tentativa de fundar um novo corolário doutrinário para expressar o interesse nacional sob uma visão peculiar e sectária do trinômio de liberdade, democracia e nacionalismo. Tudo para combater os males fantasmagóricos que ameaçam o Brasil: o comunismo, o globalismo, o politicamente correto. Uma revolução ideológica desvairada e amparada em puro revisionismo histórico de pós-verdade tomava conta das relações internacionais do país.

Como no clássico de García Márquez, o declínio inevitável do Brasil nas relações internacionais vem se consolidando a cada dia. A crônica de uma morte anunciada, no caso, foi a crônica da morte da política exterior do país. Diferentemente do realismo mágico da prosa magistral de Gabo, porém, o que assistimos foi ao surrealismo aplicado à realidade, com uma anti-diplomacia capturada por visão sectária e operada em nível de rudeza e irracionalidade sem precedente. Em contraste com a ficção, a “obra” da política vigente não diverte nem maravilha, mas constrange e envergonha, não sem causar elevados prejuízos ao interesse nacional nos mais variados tabuleiros da diplomacia. Em queda livre, dia após dia, o Brasil foi se tornando espécie de “rejeitado” universal.

O “novo corolário doutrinário” das relações exteriores sob Bolsonaro trazia consigo um equívoco estrutural de concepção: desprezar na largada os tabuleiros de fácil e imediata maximização dos interesses nacionais em troca da projeção de hipotéticas vitórias em tabuleiros mais volúveis e de alta complexidade – e isso, obviamente, sem os necessários recursos que delimitam o poder real de dissuasão de um país.

O alinhamento incondicional com os Estados Unidos de Trump, vendido como um reencontro do Brasil com seus “verdadeiros valores”, afastou o Brasil de sua tradicional independência, pragmatismo e equilíbrio na defesa do interesse de Estado nas relações internacionais. O presidente tornou-se refém da opção que construiu para o seu governo e para o Estado brasileiro: a dependência do governo Trump, a quem se terceirizou a formulação de nossas posições em diversos temas na ONU, na OMC, na OEA e até no BID, onde a sabujice alcançou seu ápice.

A visão estratégica predominante impedia o Brasil de enxergar o interesse nacional para além da subserviência ao ex-inquilino da Casa Branca. Concessão atrás de concessão, o país aniquilava sua capacidade negociadora e a sua própria importância na arena internacional. O governo Bolsonaro, ao fim, não obteve nenhuma concessão estratégica minimamente significativa do governo Trump, salvos algumas migalhas “para brasileiro ver”.

Diante de uma grave crise global e nacional de saúde pública e dependentes de insumos médicos e hospitalares da China, o governo Bolsonaro aviltava irresponsavelmente o principal parceiro comercial do país. O núcleo ideológico do governo não conseguia esconder uma visão xenófoba ao sublinhar que a doença seria uma invenção chinesa para dominar o mundo. Esqueceu-se que sem o escoamento da produção para a China a situação econômica do povo brasileiro seria impactada em matéria de ingresso de capitais, empregos e renda, e, tudo isso, em uma hora que dependíamos de toda a ajuda possível para combater uma pandemia viral e impedir o declínio total da economia brasileira. Dito de outro modo, para agradar a base ideologizada, às favas o interesse real e os empregos brasileiros.

Como potência ambiental e agrícola, o governo Bolsonaro enfraqueceu os dois vetores de força que dão impulsão e tração ao Brasil no mundo. Desde a Eco-92, no Rio, nos tornamos bem-sucedidos em conjugar esses dois importantes instrumentos, ganhando mercados e liderando importantes discussões da agenda internacional sobre o desenvolvimento sustentável. O país se tornou um ator incontornável em ambos os segmentos – ganhando escala no comércio global e participando com ator influente no tema ambiental.

A errática política ambiental do governo culminou em perda de negócios, fuga de investimentos, declínio de renda e desemprego. Vale enfatizar que o Brasil tem o menor custo de transição para a economia de baixo carbono no mundo. Bolsonaro e seu governo não compreenderam que é até antieconômico não proteger a biodiversidade. Ao invés do Brasil liderar a discussão sobre a preservação e proteção da Amazônia, por exemplo, o país passou a ser liderado por outrem.

O que os “revolucionários” do bolsolavismo não percebem é que várias dessas mudanças – seja a postura de vilão em matéria de clima, os votos contra saúde sexual e reprodutiva das mulheres na ONU, a confusão entre Estado e religião pintada como defesa da liberdade religiosa – apequenam o Brasil e comprometem sua capacidade de defender interesses reais.

Nos mais de 70 anos em que o Brasil tem a honra de abrir o debate geral da Assembleia Geral das Nações Unidas, jamais um mandatário brasileiro usou a tribuna com tamanha truculência, distribuindo bordoadas aos supostos responsáveis pelos males do país e do mundo. O primeiro discurso dessa melancólica série simplesmente chocou o planeta! Era a apresentação de um Brasil irreconhecível. De Cuba à França, dos ambientalistas aos indigenistas, da própria ONU e seus órgãos à imprensa nacional e mundial, não sobrou ninguém fora do raio de ataque da série de discursos do presidente brasileiro. Todas as mazelas do povo brasileiro eram resumidas como produto da manipulação da esquerda via governos globalistas, das instituições multilaterais, da mídia e da dominação cultural. O Brasil, a partir dessa abordagem, iniciava o seu embarque rumo ao isolamento internacional.

Quando se vive no mundo da fantasia, perde-se a capacidade de avaliar onde estão nossos reais interesses. Apesar da troca de chanceler, a política externa segue sendo precisamente a mesma. De Ernesto Araújo a Carlos França, percebe-se que os ajustes na narrativa são pontuais e limitados a ensaios sem preponderância mais profunda, do que a reais transformações.

Karl Marx dizia que “A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. Devolver à diplomacia brasileira o mínimo de austeridade e de sobriedade somente será alcançável a partir de 2023 – sem Bolsonaro no cume da República. O rastilho de destruição deixado pelo governo Bolsonaro nas relações internacionais acaba de ser retratado pelo recente gesto da “diplomacia da arminha” do ministro do exterior, constituindo retrato mais fiel dos 1000 dias deste governo.

Aliás, o alerta disparado por alguns senadores americanos, em recente missiva à Casa Branca, indica que qualquer movimento do presidente e sua seita em direção a um golpe autoritário deixará o Brasil nu, sem reconhecimento e nem legitimidade. A péssima imagem do governo Bolsonaro junto à governos estrangeiros, fundos internacionais de investimentos, imprensa, organismos multilaterais e organizações de direitos civis é, simplesmente, irrecuperável.

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