Política de cotas: hora de avaliar para avançar
No ano de 2022, o Brasil realizará eleições gerais e teremos a oportunidade de dizer não a um desgoverno federal que tantos retrocessos tem promovido em nosso país, reforçando a onda reacionária que ganhou espaço em nossa sociedade desde o Golpe de 2016.
Esse quadro por si só, já nos mostra o desafio a ser enfrentado no processo de avaliação da Lei 12.711/12, uma modalidade de ação afirmativa no ensino superior federal que institucionalizou as cotas sociais e raciais, a fim de corrigir desigualdades históricas nesse nível de ensino.
É importante ressaltar que antes mesmo da aplicação da lei, várias universidades públicas implementavam alguma modalidade de cotas, várias delas com o critério racial.
No entanto, faltam-nos um monitoramento público da implementação da Lei de Cotas nas IFES que permita a realização de análises em nível nacional, regional e local mais profundas e detalhadas sobre o perfil dos estudantes que ingressaram pelas cotas por curso, turno, área do conhecimento, raça, gênero entre outros fatores sociais.
A ausência desse monitoramento que deveria ficar a cargo da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e do Ministério da Educação é fruto da situação dramática de extinção e esvaziamento de ministérios, a imposição de perspectivas conservadoras, análises incompletas no trato dos dados nacionais, ataques à ciência, cortes orçamentários desencadeados a partir do Golpe de 2016 e acirrados pela ascensão da extrema direita ao governo federal, em 2018.
Diante desse quadro sombrio, os estudos críticos com enfoque no ensino superior e na implementação da referida Lei, apontam para a urgência de se avançar em medidas mais eficazes que fortaleçam a sua implementação, reforcem o ENEM como mecanismo de acesso dos estudantes do Ensino Médio, em especial, negros, indígenas, quilombolas, pessoas do campo, pessoas com deficiência e estudantes de escolas públicas às Instituições de Ensino Superior e que impeçam as fraudes raciais. A não adoção dessas medidas pelo governo federal fragiliza a justa implementação da lei e a própria democracia.
Vários pesquisadores, pesquisadoras e militantes concordam que Lei 12.711/12 permitiu a ampliação do acesso de negros (pretos e pardos) e indígenas ao ensino superior público federal, embora ainda não represente uma inclusão social plena.
Há pontos que precisam ser aprimorados e é justamente esse aprimoramento que o Movimento Negro, os intelectuais negros e não negros e demais pessoas do campo progressista entendem como o dever público e político do Congresso Nacional ao discutir sobre a referida legislação, em 2022.
Mas não é esse o entendimento de um grupo de parlamentares que representam as forças conservadoras e reacionárias. Atualmente, há mais de uma dezena de projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional que desfiguram a Lei 12.711/12 e apenas em torno de cinco que preveem a sua revisão para corrigir distorções e fazê-la avançar.
Nesse contexto, chamo a atenção para a estratégia perversa dos aliados do desgoverno Bolsonaro e daqueles que, mesmo não concordando com as atrocidades do presidente, possuem uma leitura míope das desigualdades vendo-as apenas pela perspectiva da classe e desprezando o peso raça e do racismo nas trajetórias pessoais e acadêmicas de jovens negros e negras.
Eles propõem não uma avaliação da lei. Mas uma revisão conservadora desta corroendo, em especial, o critério racial. Sabemos que a inclusão emancipatória e afirmativa da raça, em qualquer preceito legal do nosso país – marcado por 400 anos de escravidão e pelo racismo estrutural — é uma ação política de combate ao racismo.
Nesse momento, em que os efeitos positivos da Lei de Cotas na democratização do acesso ao ensino superior se fazem sentir e uma juventude negra se mostra mais presente na graduação por direito e não por medida assistencialista, torna-se necessário avaliar a Lei 12.711/12 para fazê-la avançar e superar os entraves à sua plena execução. Precisamos tornar público que as ações afirmativas na modalidade das cotas trouxeram para o Brasil e para as instituições públicas de ensino superior o alargamento da sua dimensão pública, a presença da diversidade e, portanto, uma maior equidade.
As cotas revelam que, qualquer instituição pública brasileira, que não retrate de forma igualitária e equânime a diversidade social, étnica, racial e de gênero existente em nosso país, não cumpre com a sua missão pública. Acaba privilegiando segmentos sociais e étnico-raciais que já têm um histórico colonial de privilégios e reproduz a elitização social e racial da ciência e do conhecimento contra a qual aquelas e aqueles que defendem a universidade pública, o antirracismo e a democracia lutam historicamente.
Se uma primeira avaliação para avançar deve ser feita é no sentido de analisar quais questões nossas instituições de ensino superior passaram a ter que, não somente lidar, mas se posicionar publicamente diante das desigualdades sociais e raciais.
As ações afirmativas, de um modo geral e as cotas, em específico, representam a maior inflexão rumo ao aprimoramento ao direito ao ensino superior público no Brasil. A luta por essas políticas trouxe o entendimento do ensino superior como um direito e não como uma escolha ou o caminho comum para aquelas e aqueles cujas condições socioeconômicas, raciais e de gênero sempre lhes garantiram representatividade nos lugares de poder e decisão.
A implementação das cotas ressignificou a luta pelo direito à educação no Brasil. A entrada de sujeitos pertencentes a coletivos diversos e historicamente tratados como desiguais no ensino superior público e, principalmente, nas universidades públicas federais, tem feito emergir diversos conhecimentos e experiências produzidos por esses sujeitos nas suas vivências comunitárias, nas suas histórias ancestrais, na sua sobrevivência frente a tantas desigualdades e violências. E isso tem transformado a ciência e a sociedade.
No atual cenário, qualquer revisão da lei 12.711/12 deve ser encarada como um rara oportunidade de aprimorar uma legislação que mexeu em um dos núcleos da colonialidade do saber e do poder: o Ensino Superior. A presença dos sujeitos pertencentes aos coletivos sociais diversos e tratados historicamente de forma desigual nesse nível de ensino tem a capacidade de provocar profundas mudanças emancipatórias em nossa ainda tão excludente estrutura social. •