Entrevista Pedro Serrano – “O impeachment de Jair Bolsonaro salvaria vidas”
O advogado Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC-SP defende as medidas adotadas pelo Tribunal Superior Eleitoral e pelo Supremo Tribunal Federal contra o presidente Jair Bolsonaro. Serrano considera que é preciso apurar a existência da organização de ataques ao STF e aos seus ministros a partir do grupo político de Jair Bolsonaro. O presidente da República deu a entender em sua fala de que existe hoje esse tipo de movimentação organizada e já existia um inquérito nesse sentido. Além disso, o advogado explica que o impeachment de Jair Bolsonaro é fundamental para o Brasil, para que se possa colocar fim ao projeto eugênico que está no poder.
Pedro Serrano que contribuiu para a elaboração da Lei de Defesa da Democracia, aprovada na Câmara e no Senado, explica o quanto é difícil combater o autoritarismo fascista, mas ao mesmo tempo o quanto é necessário que seja combatido. Na entrevista, ele ainda falou sobre como o governo de Jair Bolsonaro descumpre, desrespeita e tenta destruir a democracia constitucional. Leia a íntegra da entrevista:
– Ao longo do mandato de Jair Bolsonaro ele vem cometendo uma série de ataques contra as instituições, contra os demais Poderes da República – isso acontece desde que começou a carreira política dele, mas se torna mais forte na presidência. O senhor acha que demorou demais para que alguma atitude fosse tomada contra esse tipo de ação ou nada poderia ter sido feito antes?
– É muito difícil esse tipo de situação, nós temos que entender. Não é uma decisão fácil tomar uma atitude, não é uma decisão fácil paralisar essa escalada porque se nós tomamos a atitude prematuramente, nós matamos a democracia. Por exemplo, quando ele era um deputado dando opiniões extremas, era incorreto puni-lo. A democracia tem que conviver com posições extremistas, a meu ver. Ela não deve conviver com posições que, digamos, trazem para o pressuposto o cometimento de crime lesa-humanidade. Isso não. Não devemos aceitar o nazismo, não porque ele é extremista, mas porque ele traz para o pressuposto a extinção de etnias, a eugenia como valor e prática etc. e tal. Então, cometimentos de crime lesa-humanidade e vulneração mais intensas dos direitos humanos não devem ser aceitos no debate, mas posições extremas, sim. Senão nós matamos a democracia. Ela perde o sentido. A lógica do direito de livre expressão é salvaguardar opiniões idiotas – eu falo “idiota” no sentido filosófico da expressão, não no sentido corrente, ou seja, opiniões que são muito atípicas poque não seguem o sentido comum daquilo que deve ser atribuído à linguagem, segue uma linguagem própria. Mais ou menos o que ele [Bolsonaro] faz, nega o fato, nega tudo.
Então, enquanto exercício do direito de livre expressão, a lógica da democracia contemporânea, digamos, é desidratar os limites a esse tipo de direito. Existem limites, é óbvio, ao direito de livre expressão, mas nós temos sempre que manter desidratados esses limites porque é muito fácil de vulnerar e acabar incorrendo em práticas autoritárias a título de combater o autoritarismo. E aí está o problema. O fascismo ganha não é quando ele nos prende, porque sempre haverá outros livres para tocar a luta. Não é quando nos mata, porque sempre haverá aqueles que vão sobreviver para levar essas ideias para frente. O fascismo ganha quando nos transforma em algo parecido com ele, quando nós passamos a operar com a lógica autoritária. O que significa fundamentalmente uma lógica que coloca o poder político acima dos direitos, da Constituição e da democracia. E aí que o fascismo vai criando um “solo comum de ação” que não são os valores humanísticos, mas sim, valores autoritários como solo comum de disputa. Isso é muito grave e temos que estar sempre atentos a isso.
Por isso, acho que tomar uma atitude prematura de interrupção dessa ascensão é muito perigoso. E tomar uma atitude tardia também é muito perigoso porque aí eles vão ter vencido, vão ter derrubado a democracia etc. e tal. Veja como é fácil falar, mas como é difícil mensurar isso na realidade. Eu procuro sempre adotar uma visão democrático-constitucional a respeito dos fatos e procurar me guiar pelos valores próprios da democracia constitucional. Vou dar um exemplo polêmico.
As pessoas apontam dezenas de crimes de responsabilidade praticados por ele. Isso não é verdade. Crime de responsabilidade é algo que deve ser raro no sistema, algo que deve ser de emergência. Quem inventou a palavra golpe para designar impeachments inconstitucionais como o que houve com Dilma não foi a esquerda brasileira, foi um grande jurista americano chamado Ronald Dworkin que escreveu um artigo na revista The New Yorker chamado “Um tipo de golpe” [A Kind of Coup, 1999] em que ele aponta a tentativa de impeachment de [Bill] Clinton como uma tentativa de usar a Constituição contra ela mesma. E ele fala que no presidencialismo democrático, o impeachment é uma atitude de ultra emergência que deve ser interpretada como o uso de uma arma nuclear numa guerra. Portanto, não pode ser banalizado. E a Constituição brasileira acompanha isso. Acompanha porque ela diz que é crime de responsabilidade o atentado contra a Constituição. Veja, não é uma mera inconstitucionalidade ou uma mera ilegalidade, tem que ser um atentado contra a Constituição. O erro das pessoas é fazer como fizeram aqueles que propuseram o impeachment de Dilma e interpretar a Constituição pela lei e não a lei pela Constituição. Eles pegam uma lei de 1951, que é a Lei de Crime de Responsabilidade e querem interpretá-la por sua própria dicção, sem passar por esse filtro constitucional. Isso leva a uma banalização do impeachment no Brasil. Então, não é verdade que Bolsonaro cometeu tantos crimes de responsabilidade quanto as pessoas imaginam. O crime de responsabilidade dele é, fundamentalmente, um: a conduta durante a pandemia. Aí ele cometeu atentado à Constituição e nós temos que apertar o botão do impeachment para nos defender.
Ele atentou contra os princípios mais importantes que existem em uma democracia constitucional, o direito à vida e à saúde da população. Ele cometeu uma conduta dolosa de atentar contra a vida e a saúde da população. Ele cometeu crime de responsabilidade, sim, e está sujeito ao impeachment. Esse é o problema de você ter um presidente autoritário, populista de extrema-direita. Ele estimula a população e as instituições a praticar medidas de exceção como ele prega. Por isso, precisamos ter cautela.
– O último absurdo ao qual assistimos foram os ataques ao Tribunal Superior Eleitoral. Uma tentativa de minar a credibilidade de uma corte superior. A briga até foi mais focada no Luís Roberto Barroso e no Alexandre de Moraes, mas a corte como um todo foi atacada. E o presidente continua dizendo que sua eleição foi fraudada embora ele não tenha provas disso. Como o senhor enxerga essa situação específica do TSE, não existe crime na conduta do presidente?
– Eu acho que pode haver uma conduta aparentemente ilícita e tem que ser apurada. Primeiro, há uma conduta aparentemente ilícita no fato de ele atacar as pessoas dos ministros. Aí, já existe aparentemente um crime contra a honra. Mas há também fortes indícios, em tese, de que ele tenha praticado condutas contra a eleição. Seria mais fácil com essa Lei de Defesa da Democracia aprovada porque ficaria bem caracterizado. Mas ainda é possível de se falar nisso e, dependendo da situação, até em crime contra a Lei de Segurança Nacional. E há um ilícito eleitoral nisso. Então, corretamente, o ministro Luís Roberto Barroso abriu um procedimento que pode levar o Bolsonaro à inelegibilidade, caso se demonstre depois do direito de defesa e caso verifique-se que realmente houve esse ilícito eleitoral. E o ministro Barroso, ao mesmo tempo, comunicou o ministro Alexandre de Moraes que juntou essa questão num inquérito [das fake news] que o Supremo abriu. Eu tenho defendido a legitimidade desse inquérito face à Constituição, mas há um problema político que é preciso ressaltar, não é jurídico porque a legitimidade desse inquérito foi garantida pelo pleno do Supremo, 11 votos a 0.
O problema é a questão política. É um inquérito polêmico, recebeu muitas críticas de setores progressistas, dos juristas por uma série de problemas que ele trouxe. É uma tragédia no sentido grego. Você tem duas posições conflitantes e uma exclui a outra, é uma contradição ampla no sentido estrito da expressão. De um lado, tem um procurador-geral da República que não faz nada. Se for mandar a ação para a PGR ou PF, nada vai acontecer. Do outro lado, o outro caminho que sobra é esse inquérito que eu falei, que é polêmico, mas que vai usar essa polêmica a favor dele. Acho que foi uma medida correta de fazer essas apurações porque há indícios de que não tenha sido mera expressão do pensamento, mas de que houve ações organizativas dele para ataque ao Supremo. Aí não dá. Eles não vão investigar o que ele falou, mas se o que ele falou é parte de uma ação organizativa de um atentado violento à democracia e à Constituição que pode estar em andamento. O simples fato de estar em andamento já é crime.
– Há algum tempo o senhor afirmou em uma entrevista que o governo Lula foi um dos que mais procurou realizar a Constituição Brasileira. Então, lhe pergunto o quanto o atual governo, do Jair Bolsonaro, governa o país ignorando os seus deveres constitucionais e não me refiro ao ataque a outros Poderes, mas aos seus deveres junto ao povo brasileiro.
– Quando se fala no governo Lula, e falo especificamente dos dois mandatos de Lula, se coloca na balança o que teve de inconstitucionalidade e o que teve de realização da Constituição, o peso da realização da Constituição é maior e, mais do que isso, dos governos republicanos é o que mais realizou a ordem constitucional vigente. Primeiro, a Constituição não determina só o combate à miséria. Ela determina o combate às desigualdades regionais e sociais. Embora possa se afirmar que Lula não trabalhou tanto na questão da desigualdade social, certamente, ele tomou medidas em relação à desigualdade regional e fez um combate à miséria que implicou em algum nível de redução também da desigualdade social. Então, ele cumpriu o combate à miséria e a questão da desigualdade social. Veja, isso é fundamental para realizar a democracia.
A partir do pós-guerra, a democracia deixa de ter um perfil meramente liberal e passa a ter um perfil constitucional, ou seja, são produzidas constituições rígidas que não são neutras. É um Estado não neutro, ele não é liberal no sentido clássico. É uma Constituição que faz opções morais e ideológicas – falo em moral no sentido político da expressão, regras do bem-viver coletivo. Ela faz opções por certos princípios que, na realidade, são ideológico políticos ou ideológico morais. E são opções que devem ser realizadas no sistema, que implicam para o Estado, não como no liberalismo clássico, proibições de agir, mas a obrigação de agir.
Lula cumpriu as regras do jogo democrático, ele observou os direitos na maior parte das situações – não em todas, é verdade, poderia fazer minhas críticas aqui – mas observou na maior parte das situações e cumpriu seu mandato de forma adequada e entregou ao seu sucessor. Ele não estendeu para um terceiro mandato como poderia fazê-lo pela força que tinha na época. Afiançou a realização de uma eleição democrática em que Dilma foi eleita. Dilma acabou sendo tirada por um ato golpista – no sentido de Dworkin que estou usando, não no sentido corrente, do poder – mas, mesmo assim, respeitou a vontade institucional do Parlamento e entregou o cargo pacificamente. Ou seja, é um período que se pode falar tudo dos governos do PT, menos que não foram democráticos. E, ao mesmo tempo, eles realizaram medidas de natureza social e econômica que são realizadoras da Constituição, como nunca antes um governo republicano tinha feito.
O Bolsonaro é extremamente ao contrário. Ele atenta contra a democracia, atenta contra os direitos de liberdade, aquilo o que a Constituição proíbe. E ele deixa de realizar o que a Constituição obriga. Ao contrário, boicota o que a Constituição obriga. [Bolsonaro] produziu reformas, legislações, emendas constitucionais que atentam contra os princípios da democracia constitucional que eu falei. Temos que entender que numa democracia constitucional não basta haver procedimento de soberania popular, a eleição majoritária. É necessário que haja respeito aos direitos de liberdade e sociais. E esses direitos vão constituir um jogo democrático agônico e não antagônico. O que eu quero dizer, eles formam um commom ground, um solo comum sobre o qual se dá a disputa política. Um solo comum em que nunca vou compor com o meu adversário político, nós pensamos o mundo de forma totalmente diferente, mas eu enxergo a necessidade da existência dele para que possa existir uma sociedade livre. Por isso, eu uso a expressão “relação agônica”. Ela vem dos Jogos Olímpicos. Aquele que competia entendia que era fundamental existir o adversário para existir os Jogos. Da mesma forma, em uma democracia é preciso entender que existe o adversário e que ele é necessário para que se possa realizar uma sociedade livre e democrática.
Tudo isso só pode existir, obviamente, se os direitos forem um solo comum. E isso só ocorre numa sociedade em que não haja formas de vida totalmente diversas como na nossa. Veja a diferença de forma de vida de quem mora na favela e do bilionário brasileiro. São formas de vida muito diferentes em que é impossível se ter esse solo comum de valores entre essas formas de vida. Então, combater a desigualdade social e a miséria são formas de realizar a democracia, de realizar os direitos de liberdade. Em suma, não há realização da democracia e dos direitos onde não há combate à miséria e à desigualdade. E o Bolsonaro, primeiro, combateu diretamente os direitos de liberdade. Ele não tolerou a crítica em nenhum momento. Ele pregou o golpe o tempo inteiro, atentando diretamente contra a democracia e contra a Constituição. E, por fim, ele realizou um programa econômico que ampliou a desigualdade social, produziu mais miséria. Logo atacou a democracia constitucional. Então, o governo Bolsonaro é o extremo oposto de Lula. É um governo que ataca a Constituição de 1988, a subverte, boicota e quer destrui-la.
Enquanto o governo Lula pode ser visto como de construção nacional, a marca do governo Bolsonaro é a destruição.
– Levando em consideração tudo o que o senhor disse, hoje o impeachment de Jair Bolsonaro é algo importante para o Brasil?
– Não tenho dúvida. Salvaria vidas. A conduta dele na pandemia gerou morte, sofrimento e dor para milhões de brasileiros e continua gerando. E trago em meu apoio um estudo feito pela Escola de Saúde Pública da USP que aponta mais de 3 mil atos administrativos do governo em que houve a intenção de produzir o que se chama de imunidade de rebanho. Ou seja, se assumiu como resultado da política pública, a morte de pessoas. Ele combateu medidas de isolamento social e boicotou a compra de vacinas antecipadas. Isso não foi erro, fez parte dessa política. E quero observar que é uma política eugênica. A eugenia se observa nos dados. A imensa maioria dos mortos são velhos, que já não servem para a produção, pobres e, em geral, negros. Essas são as vítimas do Covid estatisticamente falando.
O governo Bolsonaro decidiu não coordenar medidas. Deixou de unificar os leitos particulares e públicos como foi feito na Europa. Veja, ¾ da população não tem convênio e, por isso, têm a sua disposição 40% dos leitos disponíveis de UTI. Enquanto temos ¼ da população com convênio e, assim, com acesso a 60% dos leitos de UTI. Então, quem morreu nas filas das UTIs, gente pobre e, em geral, negra. Mais uma vez, o Brasil cumpre a sua tradição, só que agora muito explícita e radicalizada, a sua tradição eugênica. A luta de classes no Brasil tem caráter eugênico. Ela se legitima numa ideologia eugênica. Você olha para as empresas e só vê executivos brancos, olha para o Estado e só vê dirigentes brancos porque, implicitamente, está se dizendo que o negro, o índio, o nordestino – aqui no Sul –, são sub-raça. Isso está sempre sendo dito explicita ou implicitamente na nossa história.
Explicitamente até em Constituições nossas, coisa que ninguém fala. A Constituição de 1934, no artigo 138, cria o primeiro direito social na história brasileira que é o direito à educação pública. Mas na linha B estipula a eugenia como princípio da educação pública brasileira. Então, veja que essa tradição eugênica está presente na pandemia. O governo Bolsonaro é um agente da eugenia.
– Um cineasta, o Silvio Tendler, afirmou em entrevista à Focus Brasil que é preciso vencer as eleições de 2022 porque se o Bolsonaro vencer novamente, seria um caminho sem volta. O senhor também enxerga dessa forma?
– Acho que temos que vencer, senão teremos uma história mais trágica do que já temos. Os democratas precisam vencer essa eleição. É uma meta essencial para a sobrevivência do nosso povo. Do contrário, vamos para um atraso semelhante ao período anterior a Getúlio. Mas quero dizer que me preocupo porque tenho visto setores progressistas subestimarem a força do Bolsonaro. Não podemos subestimá-lo. Vai ser uma luta árdua. Primeiro, precisamos vencer a eleição. Segundo, precisamos fazer com que o novo governante tome posse, porque vão tentar impedir. E depois, garantir que ele governe. Porque vão tentar impedir isso também. O bolsonarismo não se esgota na eleição. O bolsonarismo espalha efeitos pelo lavajatismo, que é uma forma de bolsonarismo jurídico. Espalha efeitos pelo que hoje se chama centro. Ele está arraigado em uma parcela significativa da nossa sociedade.