Doces Bárbaros após 45 anos continua atual
No início do ano de 1976, nos estertores do regime militar. Ano da mentirosa distensão lenta, gradual e segura protagonizada pela dupla de golpistas de 64, Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva, a Música Popular Brasileira resistia. Foi nesse ambiente que os baianos Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia se reuniram. Todos já com mais de 10 anos de carreira. Oriundos do Movimento Tropicália: Gil, Gal e Caetano e do Teatro Opinião: Bethânia, uniram-se em um espetáculo histórico que embalou plateias de milhares e milhares de pessoas pelo mundo afora. Doces Bárbaros foi o nome escolhido.
Cantando as composições da dupla Gil-Caetano, o grupo também incorporou no repertório do show as composições “Atiraste Uma Pedra”, um clássico do cancioneiro popular, composta por Herivelto Martins e David Nasser e a célebre “Fé Cega, Faca Amolada”, de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos.
Objetivando dar um choque na mesmice e se propondo desafiar a pauta de costumes e a censura da época, os artistas resolveram inovar no canto e na vestimenta. Visto inicialmente como uma revisão do Tropicalismo, com a adesão luxuosa de Maria Bethânia, o show, transformado posteriormente em disco e filme foi um sucesso estrondoso.
Acompanhado de perto por censores e policiais, a turnê teve um fato hoje visto como pitoresco, mas que causou um grande dissabor para os participantes. Quando da realização do espetáculo em Florianópolis, Santa Catarina, a polícia resolveu fazer uma busca nos apartamentos dos artistas e encontrou uma pequena quantidade de maconha no quarto de Gil e do baterista Chiquinho Azevedo. Presos em “flagrante delito”, os dois foram conduzidos à Delegacia e posteriormente levados à julgamento.
Esse percalço atrapalhou significativamente a continuidade da turnê, mas não conseguiu inviabilizar o álbum duplo, gravado ao vivo e que se compõe de 17 belíssimas canções. Dentre elas, Os Mais Doces Bárbaros de Caetano Veloso: “Com amor no coração, preparamos a invasão. Cheios de felicidade, entramos na cidade amada. Peixe espada, peixe luz. Doce bárbaro Jesus, sabe bem quem é otário, o peixe no aquário nada…Alto astral, altas transas, lindas canções. Afoxés, astronaves, aves, cordões. Avançando através dos grossos portões, nossos planos são muito bons”.
E a música “O Seu Amor”, de Gilberto Gil: “O seu amor. Ame-o e deixe-o, livre para amar…O seu amor, ame-o e deixe-o ir aonde quiser. O seu amor, ame-o e deixe-o brincar. Ame-o e deixe-o correr. Ame-o e deixe-o cansar. Ame-o e deixo dormir em paz. O seu amor, ame-o e deixe-o Ser o que ele é”. A letra, tal qual uma paródia dos clichês e patriotadas da ditadura: Brasil Ame ou deixe-o, faz uma profissão de fé pela liberdade e pelo direito de amar quem você queira. Um bálsamo no asfixiante período da cafonice e caretice de então.
45 anos depois, e com tantos retrocessos na vida nacional, nessa era de negacionismos e saudosismo da ditadura, o espetáculo que também virou filme pelas mãos do Diretor Jom Tom Azulay, traça um histórico do sucesso do trabalho e traz reflexões dos artistas e suas visões do momento.
Atualíssima é a composição Chuck Berry Fields Forever, composta por Gil como rescaldo do exílio em Londres e que nos leva a constatar que no Brasil o passado, o presente e o futuro se entrecruzam em uma antropofagia político-cultural Oswaldiana de Andrade permanentemente: “Trazido d”África pra Américas de Norte e Sul, tambor de tinto timbre tanto tom tocou. E neve, garça branca, valsa do Danúbio Azul. Tonta de tanto embalo, num estalo desmaiou. Vertigem verga, a virgem branca tomba sob o sol, rachado em mil raios pelo machado de Xangô. E assim gerados, a rumba, o mambo, o samba, o rhythm’n blues, tornaram-se os ancestrais, os pais do rock and roll…Rock é o nosso tempo, baby, rock and roll é isso. Chuck Berry Fields Forever, os quatro cavaleiros do após calipso, o após calipso. Rock and roll capítulo um, versículo vinte, sículo vinte, século vinte e um”.
Enquanto isso, continuamos à espera que “Um índio desça de uma estrela colorida e brilhante, impávido que nem Muhammad Ali”, como escreveu Caetano.