Perseu Abramo tinha classe e um certo ar de mistério.
Por Alexandre Gambirásio

Perseu Abramo tinha classe e um certo ar de mistério.
Por Alexandre Gambirásio

Um estilo reservado e polido

Por Alexandre Gambirásio*
Março de 1966

Perseu Abramo tinha classe e um certo ar de mistério. Sempre elegante em seu terno jaquetão, cabelos bem penteados, mantinha um estilo reservado e polido e não perdia a calma nem no aperto de seus deveres de chefe de reportagem de um grande jornal. Foi assim que o conheci em fins de 1959, quando o “O Estado de S. Paulo”, em fase de renovação comandada por seu grande secretário-geral Cláudio Abramo, começou a recrutar jovens repórteres que iriam formar os quadros das novas seções de Nacional e Reportagem Local.

Para esse recrutamento, Perseu organizou um minucioso questionário e uma série de testes. Recém-saído das Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia da USP, estava introduzindo em uma profissão na época ainda impulsiva e amadorística os métodos da racionalidade. Assim selecionou Vlado Herzog, Luis Weis, Carlos Azevedo e outros colegas de talento.

Nessa época, Perseu tinha a incumbência de reorganizar cada seção da Redação do “Estado”. Na Reportagem introduziu a ordem de serviço em várias vias, a previsão do espaço a ser ocupado na edição do dia seguinte, a requisição do transporte etc. Sabia dar clareza a cada etapa do trabalho jornalístico.

Nem por isso era visto pelos jovens repórteres como um burocrata. Porque Perseu gostava de escrever, escrevia bem e depressa. Além disso, por generosidade de espírito e sem qualquer traço de egoísmo profissional, ensinava aos principiantes como fazer jornalismo, E que “leades” escrevia. “Orós resiste como Paris resistiu aos alemães na I Guerra Mundial”- assim contou o esforço para salvar a barragem de Orós, grande assunto da época.

Num “Estado” dominado pelas personalidades quase místicas de Júlio Mesquita Filho e Cláudio Abramo, em que a Primeira Página era ainda inteiramente ocupada pela Seção do Exterior de Giannino Carta e a página mais importante do jornal era a dos Editoriais, Perseu ajudou a construir o espaço novo para a notícia brasileira, ambiciosa, profissional, de qualidade.

Nesse moderno “Estado”, a Primeira Página foi invadida pelo noticiário local só com a inauguração de Brasília, em 1960. Um feito do Perseu, que não só montou e pautou a cobertura, mas cuidou da infra-estrutura e da logística. As matérias escritas no descampado e na poeira da nova Capital eram levadas de Kombi até Goiânia, e lá ditadas, por rádio, para a escuta da Redação. Fez-se a primeira transmissão interna de telefoto no País. Perseu e a equipe de Brasília ganharam o Prêmio Esso nesse ano. Adivinhem quem escreveu o “lead” declarando inaugurada a Capital…

Foi uma fase de esplendor profissional para Perseu: ele tinha 30 anos. Mas tempos difíceis se aproximavam, Amadurecia a revolução de 1964 e o fim de um curto período de democracia no Brasil. Não era fácil, na época, ser simplesmente um jornalista, porque a profissão tinha de si mesma uma visão ambiciosa. Muitos jornalistas brasileiros dos anos 60 queriam se engajar na construção do País e ter influência sobre o futuro da nação.

Os anos 60 – quantos gigantes… Sartre, Malraux, Camus, De Gaulle, Eisenhower e Kennedy, Stalin, Kruschev, a Bomba H. E, no Brasil, muito forte na imaginação de todos, Fidel Castro. Pode-se imaginar a efervescência intelectual e política na Faculdade de Filosofia da USP. E nas redações, Perseu era um daqueles jornalistas intelectualmente privilegiados que se dão ao luxo de manter uma raiz paralela e permanente na academia. Jornalista e sociólogo, Intelectual e professor, Jornalista e socialista, engajado de corpo e alma na discussão política.

E foi a academia que lhe ofereceu um refúgio, a partir de 1962, quando as Redações dos jornais do País passaram a sofrer com a intolerância política. Só nos anos 70 Perseu poderia estar de volta a uma mesa de editor, cercado pelos seus jovens repórteres, acolitado por um cabeludo diagramador.

Em 1970, Perseu foi chamado por Cláudio Abramo para trabalhar na “Folha de S, Paulo”. Uma manobra delicada porque a presença de Perseu na Redação representava um risco político adicional naqueles anos de censura à imprensa e de caça às bruxas. Um lugar discreto, em que ele não chamasse tanto a atenção poderia ser a recém criada Editoria de Educação.

Foi assim que Perseu provou de uma vez por todas o seu talento profissional, ao criar na “Folha”, no espaço de alguns anos, a melhor editoria de educação do jornalismo brasileiro, De novo, brilharam as usas qualidades de organizador sistemático de coberturas e de minucioso planejador de atividades editoriais. De novo se revelaram a sua generosidade e sua aplicação sincera na formação de jovens profissionais que com ele trabalhavam.

Perseu, nesses difíceis anos 70, mostrou a disciplina e a determinação de seu caráter. Ele sempre resistiu à tentação de desafiar de modo aventureiro as iras da censura militar, arriscando a liberdade própria e de seus colegas de redação e talvez a sobrevivência do jornal. Mas devagar, e aos poucos, a Editoria de Educação da “Folha de S. Paulo” transformou-se em trincheira de resistência à ditadura.

Com grande habilidade jornalística, silenciosamente, Perseu ajudou a converter a aparentemente inofensiva Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência numa sigla temida pelo Governo. Ano a ano, as reuniões da SBPC, com total cobertura da “Folha”, começaram a ser acompanhadas de perto pela opinião pública. E a influir em favor da democratização do País.

Perseu também montou, com grande cuidado, uma extensa cobertura dos movimentos estudantis da época, agudamente consciente de que as notícias dos protestos dos jovens poderiam fornecer pistas a uma polícia política em busca de vítimas. Mas, apesar da censura, a sociedade ficou informada desses movimentos.

Uma paixão de Perseu era o ensino público, sobre cujo destino no País, promoveu, nas páginas da “Folha”, análises e debates. As Entidades que representavam os professores mereciam espaço. As longas listas de admitidos nos vestibulares começaram a aparecer na Editoria de Educação. E também a íntegra dos testes vestibulares acompanhados da correção feita pelos cursinhos.

Naqueles tempos de incerteza, Perseu desenvolveu todos os instrumentos possíveis de sua Editoria de Educação e a tornou importante e significativa para uma sociedade que não tinha uma imprensa livre.

Sempre preocupado com os jovens, Perseu criou uma “bolsa de trabalho” para desenvolver os talentos que chegassem à Redação, vindos da faculdade. Essa preocupação o levaria de volta ao ensino universitário, para participar da organização de várias faculdades de jornalismo. Mais tarde, nos anos 80, deixaria as grandes Redações para dedicar-se quase totalmente ao ensino e à política.

Enormemente talentoso dentro de uma Redação, Perseu Abramo jamais quis renunciar aos seus ideais de esquerda em troca de uma carreira, nas cúpulas bem remuneradas do jornalismo, que poderia ter sido meteórica. Mas ele tinha feito uma escolha quando jovem e ficou fiel a ela a vida toda.

O jornalismo brasileiro ganhou muito com o trabalho profissional de Perseu Abramo; poderia ter ganho mais se o Brasil não tivesse perdido, e por tantos e duros anos, a liberdade.


* Alexandre Gambirásio foi secretário de redação da Folha de S. Paulo

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