A fúria repressiva da Ditadura contra os trabalhadores do ABC vem seguindo implacavelmente o seu curso.Por Perseu Abramo
19 a 25/05/1980

A repressão e a liberdade

A fúria repressiva da Ditadura contra os trabalhadores do ABC vem seguindo implacavelmente o seu curso.Por Perseu Abramo
19 a 25/05/1980

A repressão e a liberdade

A fúria repressiva da Ditadura contra os trabalhadores do ABC vem seguindo implacavelmente o seu curso mas tem cada vez mais encontrado formas diversificadas e amplas de resistência e de exigências por liberdades.

Começou, já desde antes da greve, com a intransigência patronal e com as ameaças de intervenção feitas pelo ministro do Trabalho; seguiram-se as demonstrações de força policial ostensiva contra as assembléias, os vôos rasantes dos helicópteros do Exército, a virada do TRT e a decretação da ilegalidade da greve, a série de anúncios ameaçadores da FIESP, a intervenção nos sindicatos, a cassação e a prisão dos dirigentes, a ameaça de chacina no Primeiro de Maio, a brutal repressão à assembléia do dia 5 na praça da Matriz, a decretação da prisão preventiva, a negação de ?habeas-corpus?, as demissões em massa e as reiteradas declarações das autoridades militares sobre ?infiltração? ( ver Movimento, de abril e maio, e ver, também, outras matérias nesta edição).

A resistência maior à repressão foi exercida pela própria massa de trabalhadores, principalmente de São Bernardo, através da duração recorde da greve: 41 dias (01/04 a 11/05). Em diversos momentos desse período porém, os trabalhadores tiveram oportunidade de exercer outras formas de resistência, à medida que patrões, Polícia Militar, Polícia Política e Exército iam aumentando e diversificando os ataques.

Assim, aos ameaçadores vôos dos helicópteros do Exército sobre a cabeça dos trabalhadores reunidos em assembléia, eles responderam, no dia seguinte, com o erguer de bandeirinhas brasileiras e o entoar de hinos patrióticos. À decretação da ilegalidade, os trabalhadores responderam com a continuidade. Aos anúncios da FIESP, ameaçadores e mentirosos, o Comando de Greve respondeu com a emissão de milhares de boletins contendo orientação aos metalúrgicos. À intervenção no sindicato e à prisão dos dirigentes, os grevistas retrucaram com a substituição organizada dos líderes no comando da greve. À proibição do Primeiro de Maio e à ameaça de chacina, os trabalhadores e o povo responderam com uma concentração massiva em São Bernardo, com uma passeata como poucas vezes se viu no Brasil e com a retomada do Estádio de Vila Euclídes. À tentativa de impedimento da primeira assembléia após o Primeiro de Maio e às provocações policiais, muitos trabalhadores responderam com pedradas.À brutal repressão que se seguiu, as mulheres responderam com uma passeata digna e corajosa.

Dentro da cadeia, Lula e os demais dirigentes retrucaram com a greve de fome à violência policial e à recusa do Governo e dos patrões em reabrir as negociações. O Comitê de Solidariedade iniciou uma campanha de coleta de assinaturas, realizou mutirões pela cidade e um ato político no Tuquinha da PUC, dia 13, marcando a entrega dos abaixo-assinados ao ministro da Justiça em Brasília. O povo respondeu com a sua solidariedade e o seu apoio.

Quando, no dia 13, foi sepultada a mãe de Lula, que falecera na véspera, milhares de pessoas acorreram ao velório e ao cemitério. Muitos eram os que choravam, mas todos aplaudiram Lula e gritavam: ?Queremos Lula livre!?.

Três dias antes, na assembléia que determinou a volta ao trabalho os policiais foram dentro da sacristia da Matriz prender Osmar Mendonça, o Osmarzinho,líder de base de São Bernardo. Foi tão grande a pressão dos trabalhadores, que os policiais tiveram que desalgemá-lo e permitir que ele falasse na assembléia; um tira foi escorraçado da Igreja, socado pelos populares, com a camisa rasgada e escorrendo sangue. Osmar falou e depois foi levado para a prisão. A assembléia jurou que ia voltar ao trabalho, mas ia sabotar a produção: ?Atrás de cada máquina, o patrão terá um inimigo, um operário em guerra?.


A consciência de classe

A elevação da consciência de classe dos metalúrgicos do ABC, conseguida à custa de duras lutas, de sacrifícios imensos, de reveses e de vitórias nestes últimos três anos, não se observa apenas nas atitudes e nas ações coletivas, de que a massa tem dado inúmeras demonstrações em suas greves e em suas manifestações. Mostra-se, também, e sobretudo, nos seus dirigentes.

Em poucos anos ? e, mais especificamente, nas últimas poucas semanas ? Lula e os demais dirigentes sindicais tiveram de aprender o que, durante dezesseis anos, a Ditadura ensinara, abundantemente, a outros setores da sociedade.

Certamente a maior lição recebida por Lula e pelos demais diretores do Sindicato de São Bernardo deu-se no ano passado: a intervenção e a cassação temporárias, coincidindo com a ?trégua? da greve, deixaram em amplas camadas dos trabalhadores uma vaga sensação de logro e frustração. É possível que o ministro do trabalho e outros ?estrategistas? da Ditadura tenham suposto que poderiam enganar os trabalhadores duas vezes com o mesmo truque. E provavelmente a firmeza e a resistência dos dirigentes sindicais não surpreendeu apenas a Ditadura, mas também várias forças políticas que, o tempo todo, apostavam ? e até investiam ? no recuo e na conciliação.

Ao serem presos, pela primeira vez em sua vida, Lula e os demais dirigentes não se mostraram nem derrotados nem apavorados. Ao contrário, começaram quase imediatamente a comportar-se como o fazem os que, por longas ou sucessivas experiências, ou por profundas e adestradas convicções ideológicas, consideram a prisão política um fato previsível. Organizaram-se coletivamente, distribuíram encargos de limpeza e manutenção da ordem interna, designaram responsáveis pela comida e pelos divertimentos, discutiram, mais ou menos sistematicamente, a própria situação e a da categoria em greve.

Evidentemente, o apoio moral e material que, lá fora, os grevistas recebiam de numerosos setores da sociedade, teve grande peso no comportamento dos presos. Mesmo assim, ele foi surpreendente, mesmo para os mais experimentados observadores.

Uma clara demonstração disso foi a tranqüilidade e a dignidade com que eles prestaram depoimento. A quase todos foram submetidas cerca de vinte perguntas, padronizadas, variando apenas em detalhes: dados pessoais, perfil profissional, participação em greves, congressos e manifestações, fundo de greve, apoio e solidariedade de outras entidades, papel da Igreja, conhecimento ou relações com políticos e personalidades, organização e funcionamento da direção da greve etc. Os policiais, em seus interrogatórios, manifestaram especial interesse em saber se os presos conheciam organizações e ?infiltrações? clandestinas de esquerda, se conheciam as leis repressivas antigreve, se realmente estavam dispostos a continuar a greve mesmo depois da decretação da sua ilegalidade, e se consideravam isso um ?desrespeito à Justiça?. Mas particularmente, ainda, interessadíssimos em saber o que os presos pensavam dos vôos dos helicópteros do Exército. E o que achavam do ministro Murilo Macedo.

A greve de fome dos dirigentes de São Bernardo foi outra demonstração inequívoca dessa elevação da consciência política por parte dos dirigentes sindicais. Até algumas semanas atrás, só se tinha notícia, no Brasil, de greve de fome praticada por presos políticos, ligados a organizações de esquerda. A primeira greve de fome que escapou a esse padrão foi a dos dirigentes das entidades mineiras de professores, no final do mês passado. E a segunda foi de Lula e dos demais diretores de São Bernardo, (acompanhada por três elementos de base, presos em outra cela do DEOPS).

Lula e os demais dirigentes presos discutiram muito a realização da greve de fome, e decidiram iniciá-la, mesmo com o parecer contrário dos demais componentes da Comissão de Salários, que estavam fora da prisão. Embora a greve tenha durado poucos dias, ela foi integral enquanto durou (nenhuma alimentação) e sua cessação só foi aceita quando recomendada pela assembléia da categoria, às vésperas da volta ao trabalho.


Publicado no Jornal Movimento

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