Significado político da manipulação na grande imprensa
O público – a sociedade – é cotidiana e sistematicamente colocado diante de uma realidade artificialmente criada pela Imprensa.
O público – a sociedade – é cotidiana e sistematicamente colocado diante de uma realidade artificialmente criada pela Imprensa.
Significado político da manipulação na grande imprensa
Por Perseu Abramo
1. A Manipulação
Uma das principais características do jornalismo no Brasil, hoje, praticado pela maioria da grande Imprensa, é a manipulação da informação.
O principal efeito dessa manipulação é que os órgãos de imprensa não refletem a realidade. A maior parte do material que a Imprensa oferece ao público tem algum tipo de relação com a realidade. Mas essa relação é indireta. É uma referência indireta à realidade , mas que distorce a realidade. Tudo se passa como se a Imprensa se referisse à realidade apenas para apresentar outra realidade, irreal, que é a contrafação da realidade real. É uma realidade artificial, não-real, irreal, criada e desenvolvida pela Imprensa e apresentada no lugar da realidade real. A relação que existe entre a Imprensa e a realidade é parecida com a que existe entre um espelho deformado e um objeto que ele aparentemente reflete: a imagem do espelho tem algo a ver com o objeto, mas não só não é o objeto como também não é a sua imagem: é a imagem de outro objeto que não corresponde ao objeto real.
Assim, o público – a sociedade – é cotidiana e sistematicamente colocado diante de uma realidade artificialmente criada pela Imprensa e que se contradiz, se contrapõe e freqüentemente se superpõe e domina a realidade real que ele vive e conhece. Como o público é fragmentado no leitor ou no telespectador individual, ele só percebe a contradição quando se trata da infinitesimal parcela de realidade da qual ele é protagonista, testemunha ou agente direto, e que, portanto, conhece. A imensa parte da realidade ele a capta por meio da imagem artificial e irreal da realidade criada pela Imprensa; essa é, justamente, a parte da realidade que ele não percebe diretamente, mas aprende por conhecimento.
Daí que cada leitor tem, para si, uma imagem da realidade, que na sua quase totalidade, não é real. É diferente e até antagonicamente oposta à realidade. A maior parte dos indivíduos, portanto, move-se num mundo que não existe, e que foi artificialmente criado para ele justamente a fim de que ele se mova nesse mundo irreal.
A manipulação das informações se transforma, assim, em manipulação da realidade.
2. Os padrões da manipulação
A manipulação da realidade, pela Imprensa, ocorre de várias e múltiplas formas. É importante notar que não é todo o material que toda a Imprensa manipula sempre. Se fosse assim – se pudesse ser assim – o fenômeno seria autodesmistificador e autodestruidor por si mesmo, e sua importância seria extremamente reduzida ou quase insignificante. Também não é que o fenômeno ocorra uma vez ou outra, numa ou noutra matéria de um ou outro jornal; se fosse esse o caso, os efeitos seriam igualmente nulos ou insignificantes.
A gravidade do fenômeno decorre do fato de que ele marca a essência do procedimento geral do conjunto da produção cotidiana da Imprensa, embora muitos exemplos ou matérias isoladas possam ser apresentados para contestar a característica geral.
Essa característica geral pode ser observada quando se procura tipificar as formas mais usuais de manipulação. E isso permite falar em Padrões de Manipulação observáveis na produção jornalística. Os padrões devem ser tomados como padrões, isto é, como tipos ou modelos de manipulação, em torno dos quais gira, com maior ou menor grau de aproximação ou distanciamento, a maioria das matérias da produção jornalística.
É possível distinguir e observar, portanto, pelo menos 4 padrões de manipulação gerais para toda a Imprensa e mais um específico para o Telejornalismo, e que a seguir vão delineados.
1. Padrão de Ocultação – É o padrão que se refere à ausência e à presença dos fatos reais na produção da Imprensa. Não se trata, evidentemente, de fruto do desconhecimento, e nem mesmo de mera omissão diante do real. É, ao contrário, um deliberado silêncio militante sobre determinados fatos da realidade. Esse é um padrão que opera nos antecedentes, nas preliminares da busca da informação. Isto é, no “momento” das decisões de planejamento da edição, da programação ou da matéria particular daquilo que na Imprensa geralmente se chama de pauta.
A ocultação do real está intimamente ligada àquilo que freqüentemente se chama de fato jornalístico. A concepção predominante – mesmo quando não explícita – entre empresários e empregados de órgãos de comunicação sobre o tema é a de que existem fatos jornalísticos e fatos não-jornalísticos. E que, portanto, à Imprensa cabe cobrir e expor os fatos jornalísticos e deixar de lado os não-jornalísticos. Evidentemente, essa concepção acaba por funcionar, na prática, como uma racionalização a posteriori do padrão de ocultação, na manipulação do real.
Ora, o mundo real não se divide em fatos jornalísticos e não-jornalísticos, pela primária razão de que as características jornalísticas, quaisquer que elas sejam, não residem no objeto da observação, e sim no sujeito observador e na relação que este estabelece com aquele. O “jornalístico” não é uma característica intrínseca do real em si, mas da relação que o jornalista – ou melhor, o órgão do jornalismo, a Imprensa – decide estabelecer com a realidade. Nesse sentido, todos os fatos, toda a realidade pode ser jornalística, e o que vai tornar jornalístico um fato independe das suas características reais intrínsecas, mas sim das características do órgão de imprensa, da sua visão de mundo, da sua linha editorial, do seu “projeto”, enfim, como se diz hoje.
Por isso é que o Padrão de Ocultação é decisivo e definitivo na manipulação da realidade: tomada a decisão de que um fato “não é jornalístico”, não há a menor chance de que o leitor tome conhecimento de sua existência, através da Imprensa. O fato real foi eliminado da realidade, ele não existe. O fato real ausente deixa de ser real para se transformar em imaginário. E o fato presente na produção jornalística, real ou ficcional, passa a tomar o lugar do fato real, e a compor, assim, uma realidade diferente da real, artificial, criada pela imprensa.
2. Padrão de Fragmentação – Eliminados os fatos definidos como não-jornalísticos, o “resto” da realidade é apresentado pela Imprensa ao leitor não como uma realidade, com suas estruturas e interconexões, sua dinâmica e seus movimentos e processos próprios, suas causas, suas condições e suas conseqüências. O todo real é estilhaçado, despedaçado, fragmentado em milhões de minúsculos fatos particularizados, na maior parte dos casos desconectados entre si, despojados de seus vínculos com o geral, desligados de seus antecedentes e de seus conseqüentes no processo em que ocorrem, ou reconectados e revinculados de forma arbitrária e que não corresponde aos vínculos reais, mas a outros ficcionais, e artificialmente inventados. Esse padrão também se operacionaliza no “momento” do planejamento da pauta, mas, principalmente no da busca da informação, na elaboração do texto, das imagens e sons, e no de sua apresentação, na edição.
O Padrão de Fragmentação implica duas operações básicas: a Seleção de Aspectos, ou particularidades, do Fato e a Descontextualização.
A Seleção de Aspectos do fato que é objeto da atenção jornalística obedece a princípios semelhantes aos que ocorrem no Padrão de Ocultação. Embora tenha sido escolhido como um fato jornalístico e, portanto, digno de merecer estar na produção jornalística, o fato é decomposto, atomizado, dividido, em particularidades, ou aspectos do fato, e a Imprensa seleciona os que apresentará ou não ao público. Novamente, os critérios para essa Seleção não residem necessariamente na natureza ou nas características do fato decomposto, mas sim nas decisões, na linha, no projeto do órgão de imprensa, e que são transmitidos, impostos ou adotados pelos jornalistas desse órgão.
A Descontextualização é uma decorrência da Seleção de Aspectos. Isolados como particularidades de um fato, o dado, a informação, a declaração, perdem todo o seu significado original e real, para permanecer no limbo, sem significado aparente, ou receber outro significado, diferente e mesmo antagônico ao significado real original.
A fragmentação da realidade em aspectos particularizados, a eliminação de uns e a manutenção de outros, e a descontextualização dos que permanecem, são essenciais, assim, à distorção da realidade e à criação artificial de uma outra realidade.
3. Padrão da Inversão – Fragmentado o fato em aspectos particulares, todos eles descontextualizados, intervém o Padrão da Inversão, que opera o reordenamento das partes, a troca de lugares e de importância dessas partes, a substituição de umas por outras e prossegue, assim, com a destruição da realidade original e a criação artificial da outra realidade. É um padrão que opera tanto no planejamento quanto na coleta e transcrição das informações, mas que tem seu reinado por excelência no momento da preparação e da apresentação final, ou da edição, de cada matéria ou conjunto de matérias.
Há várias formas de inversão. Freqüentemente muitas delas são usadas na mesma matéria; em quase todas as matérias ocorre uma ou outra inversão. As principais são:
3.1 – Inversão da relevância dos aspectos: o secundário é apresentado como o principal e vice-versa; o particular pelo o geral e vice-versa; o acessório e supérfluo no lugar do importante e decisivo; o caráter adjetivo pelo substantivo; o pitoresco, o esdrúxulo, o detalhe, enfim, pelo essencial.
3.2.- Inversão da forma pelo conteúdo: o texto passa a ser mais importante que o fato que ele reproduz; a palavra, a frase, no lugar da informação; o tempo e o espaço da matéria predominando sobre a clareza da explicação; o visual harmônico sobre a veracidade ou a fidelidade, o ficcional espetaculoso sobre a realidade.
3.3 – Inversão da versão pelo fato: não é o fato em si que passa a importar, mas a versão que dele tem o órgão de imprensa, seja essa versão originada no próprio órgão de imprensa, seja adotada ou aceita de alguém – da fonte das declarações e opiniões. O órgão de imprensa praticamente renuncia a observar e expor os fatos mais triviais do mundo natural ou social, e prefere, em lugar dessa simples operação, apresentar as declarações, suas ou alheias sobre esses fatos. Freqüentemente, sustenta as versões mesmo quando os fatos as contradizem. Muitas vezes, prefere engendrar versões e explicações opiniáticas cada vez mais complicadas e nebulosas a render-se à evidência dos fatos. Tudo se passa como se o órgão de imprensa agisse sob o domínio de um princípio que dissesse: se o fato não corresponde à minha versão, deve haver algo errado com o fato.
3.3.1 – Um dos extremos desse Padrão de Inversão é o Frasismo, o abuso da utilização de frases ou de pedaços de frases sobre uma realidade para substituir a própria realidade. Acoplado às demais formas de manipulação – ocultação, fragmentação, seleção, descontextualização, várias inversões, etc. – o frasismo surge, assim, quase como a manipulação levada aos seus limites: uma frase, um trecho de frase, às vezes uma expressão ou uma palavra, são apresentadas como a realidade original. O abuso é tão excessivo que quase todos os grandes órgãos de Imprensa chegam a criar uma “seção de frases”, isto ?é, uma realidade robótica, extraterrena, pura ficção – embora – e aí a gravidade da manipulação – parecendo-se ao máximo com a mais pura forma de realidade, porque, afinal, aquelas palavras foram ditas por aquelas pessoas e fielmente registradas, de preferência com gravador, e literalmente transcritas.
3.3.2 – O outro extremo da inversão do fato pela versão é o Oficialismo, esta expressão aqui utilizada para indicar a fonte “oficial” ou “mais oficial” de qualquer segmento da sociedade, e não apenas as autoridades do Estado ou do Governo. No lugar dos fato uma versão, sim, mas de preferência, a versão oficial. A melhor versão oficial é a da autoridade, e a melhor autoridade, a do próprio órgão de imprensa. À sua falta, a versão oficial da autoridade cujo pensamento é o que mais corresponda à do órgão de imprensa, quando se trata de apresentar uma realidade de forma “positiva”, isto é, de maneira a que o leitor não apenas acredite nela mas a aceite e adote. Caso contrário, a versão que mais se opõe à do órgão de imprensa. A autoridade pode ser o presidente da República, o governador do Estado, o reitor da Universidade, o presidente do Centro Acadêmico, do Sindicato, do partido Político ou de uma Sociedade de Amigos de Bairro. Ela sempre vale mais do que as versões de autoridades subalternas, sempre muito mais que a dos personagens que não detêm qualquer forma de autoridade e, evidentemente, sempre infinitamente mais do que a realidade. Assim, o Oficialismo se transforma em Autoritarismo.
3.4. – Inversão da Opinião pela Informação. A utilização sistemática e abusiva de todos esses padrões de manipulação leva quase inevitavelmente a outro padrão: o de substituir, inteira ou parcialmente, a informação pela opinião. Vejam bem que não se trata de dizer que, além da informação, o órgão de imprensa apresenta também a opinião, o que seria justo, louvável e desejável. Mas que o órgão de imprensa apresenta a opinião no lugar da informação, e com a agravante de fazer passar a opinião pela informação. O juízo de valor é inescrupulosamente utilizado como se fosse um juízo de realidade, quando não como se fosse a própria mera exposição narrativa/descritiva da realidade. O leitor/espectador já não tem mais diante de si a coisa tal como existe ou acontece, mas sim uma determinada valorização que o órgão quer que ele tenha de uma coisa que ele desconhece, porque o seu conhecimento lhe foi oculto, negado e escamoteado pelo órgão.
Essa inversão é operada pela negação, total ou quase total, da distinção entre juízo de valor e juízo de realidade, entre o que já se chamou de “gêneros jornalísticos”, ou seja, de um lado a notícia, a reportagem, a entrevista, a cobertura, o noticiário, e, de outro, o editorial, o artigo, formas de apreensão e compreensão do real que, coexistentes numa mesma edição ou programação, completavam-se entre si e ofereciam ao leitor alternativas de formar sua (do leitor) opinião, de maneira autônoma e independente. Hoje, exatamente ao contrário, o fato é apresentado ao leitor arbitrariamente escolhido dentro da realidade, fragmentado no seu interior, com seus aspectos correspondentes selecionados e descontextualizados, reordenados invertidamente quanto à sua relevância, seu papel e seu significado, e, ainda mais, tendo suas partes reais substituídas por versões opiniáticas dessa mesma realidade. O jornalismo, assim, não reflete nem a realidade nem essa específica parte da realidade que é a opinião pública ou do seu público. Ao leitor/espectador, assim, não é dada qualquer oportunidade que não a de consumir, introjetar e adotar como critério de ação, a opinião que lhe é autoritariamente imposta, sem que lhe sejam igualmente dados os meios de distinguir ou verificar a distinção entre informação e opinião. Esta se introduz sub-repticiamente no meio da matéria, substitui ou prepondera sobre a informação, e passa a ser não apenas o eixo principal da matéria, como a sua principal ou única justificativa de existência enquanto matéria jornalística, enquanto objeto de produção e de edição, apresentação e veiculação. A informação, quando existe, serve apenas de mera ilustração exemplificadora da opinião adrede formada e definida – a tese – e que, esta sim, se quer impor à sociedade.
Essa particular inversão da opinião sobre a informação pode às vezes assumir caráter tão abusivo e absoluto que passa a substituir a realidade real até aos olhos do próprio órgão de informação. Não é incomum perceber que, às vezes os responsáveis pelos órgãos cometem erros – aí, sim, involuntários – porque passaram a acreditar integralmente nas matérias do próprio órgão, sem perceber que elas não correspondem à realidade.
4. Padrão da Indução – É necessário repetir que os Padrões de Manipulação até aqui descritos não ocorrem necessariamente em todas as matérias de todos os órgãos impressos, auditivos ou televisivos, diariamente ou periodicamente nos órgãos e programas periódicos. É possível encontrar, diariamente, um grande número de matérias em que esses processos de manipulação não existam ou existam em grau mínimo; e, também, encontrar um certo número de matérias em que as distorções da realidade são frutos de erros involuntários ou de limitações naturais à capacidade de captar e transmitir informações sobre a realidade. É possível, até, que o número de matérias em que tal ocorra seja eventualmente superior ao das em que seja possível identificar a existência de padrões de manipulação. E, finalmente, deve-se levar em conta, também, a variação da intensidade de utilização da manipulação segundo o órgão em exame ou o assunto, tema ou “editoria” de cada órgão.
Mas o que torna a manipulação um fato essencial e característico da maioria da grande imprensa brasileira hoje é que a hábil combinação dos casos, dos momentos, das formas e dos graus de distorção da realidade submete, no geral e no seu conjunto, a população à condição de ser excluída da possibilidade de ver e compreender a realidade real e a consumir uma outra realidade, artificialmente inventada. É isso que eu chamo de Padrão de Indução.
Submetido, ora mais, ora menos, mas sistemática e constantemente, aos demais padrões de manipulação, o leitor é induzido a ver o mundo como ele não é, mas sim como querem que ele o veja. O Padrão de Indução é, assim, o resultado e ao mesmo tempo o impulso final da articulação combinada de outros padrões de manipulação dos vários órgãos de comunicação com os quais ele tem contato. O Padrão de Indução tem a ver, como os demais, com os processos de planejamento, produção e edição do material jornalístico, mas ultrapassa esses processos e abarca, ainda, os planos de apresentação final, no parque gráfico ou nas instalações, de radiodifusão, distribuição, índices de tiragem e audiência de publicidade, etc. – ou seja, os planos de produção jornalística como parte da Indústria Cultural e do empreendimento empresarial-capitalista.
A indução da outra realidade – diferente e até oposta à realidade real – é o fruto da manipulação do conjunto dos meios de comunicação, em que cada qual, individualmente, tem a sua parte, e em que, evidentemente a parte preponderante deve ser responsabilizada aos maiores meios de comunicação, isto é, aos mais poderosos, aos que têm maior tiragem e audiência, aos que têm e ocupam maiores espaços, aos que veiculam mais publicidade. Em outras palavras, aos melhores.
A indução se manifesta pelo reordenamento ou recontextualização dos fragmentos da realidade, pelo subtexto – aquilo que é dito sem ser falado – da diagramação e da programação, das manchetes, notícias e comentários, sons e imagens, pela presença/ausência de temas, segmentos do real, de grupos da sociedade e de personagens.
Alguns assuntos jamais, ou quase nunca, são tratados pela Imprensa, enquanto outros aparecem quase todo o dia. Alguns segmentos sociais são vistos pela Imprensa apenas sob alguns poucos ângulos, enquanto permanece na obscuridade toda a complexa riqueza de suas vidas e suas atividades. Alguns personagens jamais aparecem em muitos órgãos de comunicação, enquanto outros comparecem abusivamente, à saciedade, com uma irritante e enjoativa freqüência. Alguns aspectos são sistematicamente relembrados na composição das matérias sobre determinados grupos sociais mas igualmente evitados de forma sistemática quando se trata de outros. Depois de distorcida, retorcida e recriada ficcionalmente, a realidade é ainda assim dividida pela Imprensa em realidade do campo do Bem e realidade do campo do Mal, e o leitor/espectador é induzido a acreditar não só que seja assim, mas que assim será eternamente, sem possibilidade de mudança.
5. Padrão Global ou o Padrão Específico do Jornalismo de Televisão e Rádio – O jornalismo de radiodifusão (TV e Rádio) passa por todos os 4 tipos gerais de Padrões de Manipulação, mas ainda apresenta outro que lhe é específico. Embora haja pequenas diferenças entre o radiojornalismo e o telejornalismo, o Padrão Global é o mesmo para ambos, grosso modo. Vamos descrevê-lo sumariamente, tomando como ponto de referência o jornalismo de televisão.
A expressão global é aqui empregada com o sentido de total, completo ou “redondo”, isto é, do problema à sua solução.
O Padrão Global se divide em três momentos básicos, como se fossem três atos de um espetáculo, de um jogo de cena:
1 – O Primeiro Momento, ou 1o Ato, é o da Exposição do Fato. Submetido a todos os padrões gerais de manipulação, o fato é apresentado sob os seus ângulos menos racionais e mais emocionais, mais espetaculares e mais sensacionalistas. As imagens e sons mostram o incêndio, a tempestade, a enchente, ou a convenção do Partido Majoritário, a passeata, a greve, o assalto, o crime, etc. As imagens são amparadas por textos lidos ou falados.
2 – O Segundo Momento, ou 2o Ato, é o da Sociedade Fala. As imagens e sons mostram detalhes e particulares, principalmente dos personagens envolvidos. Eles apresentam seus testemunhos, suas dores e alegrias, seus apoios e críticas, suas queixas e propostas.
3 – O Terceiro Momento, ou 3o Ato, é o da Autoridade Resolve. Se se trata de um Fato “Natural” (incêndio, tempestade, enchente), a autoridade (do Papa ou do Presidente da República ao guarda, nessa ordem) anuncia as providências, isto é, as soluções já tomadas ou prestes a serem tomadas. Se se trata de Fato Social (greve, passeata, reunião de partido, sessão do Parlamento, homicídio, assalto, etc.) a autoridade reprime o Mal e enaltece o Bem, e também anuncia as soluções já tomadas ou a tomar, para as duas situações. Nos dois casos, a autoridade tranqüiliza o povo, desestimula qualquer ação autônoma e independente do povo, mantém a autoridade e a ordem, submete o povo ao controle dela, autoridade.
É claro que pode haver variações, ampliação ou redução de momentos, maior ou menor amplitude de fatos, versões e opiniões diferenciadas, Mas a maior parte do noticiário de TV segue esse Padrão Global. E, freqüentemente, ao Terceiro Ato – o da Autoridade Resolve – segue-se um Epílogo, em que a própria Emissora, por seu apresentador ou comentarista, reforça o papel resolutório, tranqüilizador e alienante da autoridade; ou a substitui ou a contesta quando a mensagem da autoridade não é suficientemente controladora da opinião pública.
É óbvio que a retenção dessas imagens finais da notícia do telejornalismo é que vai subsistir, no telespectador, como a mensagem essencial da matéria, individualizada nas imagens iniciais, E, assim, o Padrão de Indução da outra realidade se completa e se reforça com o poderoso instrumento do radiojornalismo e do telejornalismo.
A transformação está completa. A realidade real foi substituída por outra realidade, artificial e irreal, anti-real, e é nesta que o cidadão tem que se mover e agir. De preferência, não agir!
OBJETIVIDADE E SUBJETIVIDADE
O processo de manipulação da realidade é uma característica intrínseca ao jornalismo ou é a marca, apenas, de um tipo de jornalismo? Seria possível fazer um jornalismo não manipulador, ou que, pelo menos, minimizasse ao máximo a manipulação, de forma a reduzir drasticamente os seus efeitos, a torná-la apenas um fato ocasional e excepcional?
A resposta a essa questão passa pela discussão do tema da objetividade e da subjetividade no jornalismo.
Em primeiro lugar é necessário distinguir o conceito de objetividade de um conjunto de outros conceitos aos quais sempre aparece vinculado: neutralidade, imparcialidade, isenção, honestidade.
Há diferenças fundamentais entre a objetividade e os demais conceitos. Neutralidade, imparcialidade, isenção, honestidade, etc., são palavras que se situam no campo de ação. Dizem respeito aos critérios do fazer, do agir, do ser. Referem-se mais adequadamente a categorias de comportamento moral. Os próprios conceitos têm um caráter moralista e moralizante, e, quando conjugados aos seus antônimos, formam pares que tendem a nos convocar a um ajuizamento do tipo bom/mau, certo/errado, etc.
Com exceção do par honestidade/desonestidade – no qual o pressuposto é de que todos nós devamos sempre louvar o pólo positivo, bom – isto é, a honestidade – os demais requerem uma postura mais crítica, quando se trata de jornalismo.
Vejamos: é desejável, para um jornalista, para um órgão de comunicação, uma postura de neutralidade, imparcialidade ou isenção, no lugar de seu contrário, isto é, a tomada de posição? Na medida em que o jornalismo tem de tratar do mundo real, “natural” ou “histórico”, e que esse mundo real é repleto de contradições reais, de conflitos, de antagonismos e de lutas, o que significa realmente ser neutro, imparcial ou isento? “Neutro” a favor de quem, num conflito de classes? “Imparcial” contra quem, diante de uma greve, da votação de uma Constituição? “Isento” para que lado, num desastre atômico ou num escândalo administrativo?
Assim é defensável que o jornalismo, ao contrário do que muitos preconizam, deve ser não-neutro, não imparcial e não isento diante dos fatos da realidade. E em que momento o jornalismo deve tomar posição? Na orientação para ação. O órgão de comunicação não apenas pode mas deve orientar seus leitores/espectadores , a sociedade, na formação da opinião, na tomada de posição e na ação concreta enquanto seres humanos e cidadãos. É esse, exatamente, o campo do juízo de valor, do artigo de fundo, da opinião, do comentário, do artigo, do editorial.
O conceito de objetividade, porém, situa-se em outro campo, que não o da ação: situa-se no campo do conhecimento. A objetividade é uma categoria gnoseológica, epistemológica, mais que deontológica ou ontológica. A objetividade tem a ver com a relação que se estabelece entre o sujeito observador e o objeto observável (a realidade externa ao sujeito ou externalizada por ele), no momento do conhecimento. A objetividade não é um apanágio nem do sujeito nem do objeto, mas da relação entre um e outro, do diálogo entre sujeito e objeto; é uma característica, portanto, da observação, do conhecimento, do pensamento.
É claro que a objetividade – bem como o seu contrário, a subjetividade – não existe em absoluto e em abstrato. Entre a subjetividade e a objetividade existe uma gradação, em que os dois pólos indicam os limites tangenciais dessa gama variada e graduada. Da mesma forma, há sempre elementos de subjetividade na objetividade e de objetividade na subjetividade. Assim, nunca se é inteiramente subjetivo nem totalmente objetivo, na relação de apreensão e conhecimento do real. Mas é possível proceder mais ou menos objetivamente ou subjetivamente, e é esta noção que é fundamental reter: a da possibilidade concreta de buscar a objetividade e de tentar aproximar-se ao máximo dela.
Quais os requisitos para que essa possibilidade concreta se torne viável, se realize de fato?
Em primeiro lugar, no conhecimento mesmo dos limites e das condições da capacidade humana de apreender e captar o real, nas circunstâncias que influenciam a capacidade de observação, nos fatores que intervêm nas operações mentais do raciocínio, nas limitações da possibilidade de verbalização e de transmissão do apreendido. Quanto maior a capacidade de conhecer e colocar sob controle os fatores de subjetividade inerentes à relação sujeito-objeto, maiores as possibilidades de se aproximar de uma captação objetiva da realidade.
Em segundo lugar, na disposição de alcançar essa objetividade. Se se parte, apenas, da constatação de que a objetividade absoluta não existe e de que, portanto, não vale a pena procurar uma objetividade relativa, não se sairá jamais da mais completa subjetividade. Se se acredita que não existe qualquer possibilidade de obter a objetividade, chafurda-se, então, num mar de subjetividade, sem remissão. A volição, portanto, além do conhecimento e do autocontrole, é requisito básico.
Em terceiro lugar, o conhecimento da realidade é tanto mais objetivo quanto mais o sujeito observador não se prende às aparências, procura envolver totalmente o objeto da observação, busca seus vínculos com o todo ao qual pertence, bem como as interconexões internas dos elementos que o compõem, investiga os momentos antecedentes e conseqüentes no processo do qual o objeto faz parte, reexamina o objeto sob vários ângulos e várias perspectivas. Se o sujeito observador faz isso, tem grandes probabilidades de conhecer, com o máximo de objetividade possível, o objeto real em que está interessado. Se não faz, gradativamente cede terreno à subjetividade. Esta, é claro, prescinde desses requisitos e cuidados. No limite, a subjetividade prescinde do objeto. A objetividade, portanto, necessita de conhecimento, vontade, controle e método.
Existe, é claro, uma falsa objetividade, que pervagou por muito tempo manuais de jornalismo e mesmo certos jornais da grande imprensa. É uma objetividade falsa, não porque relativa, mas porque aparente e subjetiva. Esse método de objetividade restringe-se aos aspectos meramente aparentes e quantificáveis da realidade, aos dados mais flagrantes e numéricos, supondo, com isso, que assim vê objetivamente a realidade. Ora, nem toda a realidade é dimensionável, redutível a números, cifras, pesos, metros, quantias e quantidades, anos de idade e datas, etc. E freqüentemente os dados mais aparentes e espetaculares de uma realidade são também os mais irrelevantes e secundários. Esse tipo de falsa objetividade tornou-se tão abusivo e irracional que provavelmente provocou uma reação contrária igualmente irracional e abusiva, isto é, o abandono, a renúncia, a qualquer tentativa séria de procurar ver e descrever objetivamente a realidade. É necessário fazer a crítica da falsa objetividade e repor a discussão do tema em termos serenos, porém firmes, da metodologia do conhecimento sob uma abordagem lógica não convencional.
Voltando agora à questão inicial: é possível fazer jornalismo com o máximo possível de objetividade. Mais ainda, é desejável fazê-lo porque essa é a única forma de reduzir ao máximo o erro involuntário e impedir a manipulação deliberada da realidade.
O reino da objetividade é a informação, a notícia, a cobertura, a reportagem, a análise, assim como o reino da tomada de posição era a opinião, o comentário, o artigo, o editorial. É fundamental separar e distinguir informação de opinião, indicar as diferenças de conteúdo e forma dos gêneros jornalísticos, e apresentar toda a produção jornalística ao leitor/telespectador de forma a que ele perceba imediatamente o que é a exposição da realidade, e o que é ajuizamento de valor.
O significado político da manipulação
Se é possível fazer jornalismo com objetividade, porque o jornalismo manipula a informação e distorce a realidade? Se é possível identificar e distinguir padrões reiterativos de manipulação, ela é fruto do erro involuntário, da causalidade excepcional ou das naturais limitações da capacidade de observação e conhecimento? Certamente não. A conclusão a que se pode chegar, pelo menos como hipótese de trabalho, é a de que a distorção da realidade pela manipulação da informação é deliberada, tem um significado e um propósito.
Não é necessário estender-se na demonstração de que, na sua imensa maioria, os principais órgãos de comunicação no Brasil de hoje são propriedade da empresa privada. Também não é necessário demonstrar o grau de controle que as empresas exercem sobre a produção, de onde é possível concluir que são os proprietários das empresas de comunicação os principais – embora não os únicos – responsáveis pela deliberada distorção da realidade pela manipulação das informações.
A discussão que deve ser feita, portanto, é a que possa nos levar a compreender porque os empresários da comunicação manipulam e torcem a realidade.
Uma das explicações para essa questão procura situar a raiz da resposta no campo econômico. E há duas vertentes para a explicação economicista do fenômeno. A primeira desloca para a figura do anunciante a responsabilidade última e maior pelo produto final da comunicação: segundo essa vertente, é por imposição – direta ou indireta – desse anunciante (privado ou estatal) que o empresário se vê obrigado a manipular e distorcer. A segunda vertente centra a explicação na ambição de lucro do próprio empresário de comunicação: ele distorce e manipula para agradar seus consumidores, e, assim, vender mais material de comunicação e assim aumentar seus lucros: a responsabilidade é do próprio empresário de comunicação, mas a motivação é econômica.
É bastante provável que ambos esses elementos entrem, em maior ou menor grau, no comportamento de grande parte das empresas de comunicação. Mas não parecem explicar todo o fenômeno. O peso de cada anunciante individual sobre o órgão de comunicação, ou mesmo de seu conjunto, é muito ponderável na pequena imprensa, naquela em que a manipulação surte menos efeito. Onde a manipulação impera é na grande imprensa, na que conta, como recriadora de uma realidade artificial, e, nessa, o peso econômico do anunciante, enquanto expressão editorial, é quase nulo ou bastante reduzido.
A ambição de lucro, por outro lado, não explica, por si só, a manipulação e a distorção. Em primeiro lugar porque muito provavelmente o empresário , no Brasil de hoje, teria mais chances de obter lucros mais gordos e mais rápidos aplicando seu capital em outros ramos da Indústria, do Comércio ou das Finanças, e não precisaria investi-los na comunicação. Em segundo lugar, porque nada garante que outro tipo de jornalismo, não manipulador, não tivesse uma audiência infinitamente maior do que a que consome os produtos de comunicação manipulados. É evidente que os órgãos de comunicação, e a Indústria Cultural de que fazem parte, estão submetidos à Lógica Econômica do Capitalismo. Mas o Capitalismo opera também com outra lógica – a lógica Política, a lógica do Poder – e é aí, provavelmente que vamos encontrar a explicação da manipulação jornalística.
Assim é sustentável a afirmação – pelos menos em caráter de hipótese de trabalho – de que os órgãos de comunicação se transformaram em novos órgãos de poder, em órgãos político-partidários, e é por isso que eles precisam recriar a realidade onde exercer esse poder, e para recriar a realidade eles precisam manipular as informações. A manipulação, assim, torna-se uma necessidade da empresa de comunicação, mas como a empresa não foi criada nem organizada para exercer diretamente o Poder, ela procura transformar-se em partido político. Aliás, os grandes e modernos órgãos de comunicação, no Brasil, parecem-se efetivamente muito com partidos políticos.
1. Da mesma forma que os partidos têm seus manifestos de fundação, seus programas, suas teses, os órgãos de comunicação têm seus projetos editoriais, suas linhas editoriais, seus artigos de fundo.
2. Os partidos têm estatutos, regimentos internos e regulamentos; os órgãos de comunicação têm seus Manuais de Redação, suas Normas de Trabalho.
3. Os partidos têm seu aparato material: sedes, móveis e equipamentos, verbas, veículos, etc. Os órgãos de comunicação também têm seu aparato material, freqüentemente mais diversificado e mais moderno que o da média dos partidos.
4. Os partidos têm seus filiados, seus militantes, seus quadros dirigentes centrais e intermediários. Os órgãos têm o equivalente: empregados, chefes, diretores, editores, de quem exigem adesão e fidelidade freqüentemente maior que a que os partidos exigem de seus filiados.
5. Os partidos têm normas disciplinares com as quais aplicam sanções aos filiados que se afastam da linha partidária. Os órgãos também têm normas disciplinares, com as quais aplicam prêmios de reforço aos mais fiéis, e rebaixamentos, suspensões e expulsões aos que se desviam da linha editorial.
6. Os partidos têm sede central, diretórios regionais e locais, células, núcleos, áreas de influência e intercâmbio com entidades do movimento social. Os órgãos têm sede central ou matriz, sucursais correspondentes e enviados especiais, contratos e convênios com outros órgãos e com agências internacionais.
7. Os partidos são um ponto de referência para segmentos sociais, têm seus simpatizantes e seu eleitorado. Os órgãos também são um ponto de referência para milhares ou milhões de leitores/espectadores, têm seus simpatizantes e seguidores, o seu leitorado.
8. Os partidos procuram ter os seus boletins, o seu jornal, a sua revista, seus volantes e panfletos, seus carros de som e seus palanques com alto-falantes, enfim, seus meios de comunicação. Os órgãos de comunicação são os meios de comunicação de si mesmos enquanto partidos.
9. Os partidos procuram conduzir partes da sociedade ou o conjunto da sociedade para alvos institucionais, para a conservação de algumas instituições e para a transformação de outras; têm enfim um projeto histórico relacionado com o Poder. Os órgãos de comunicação também procuram conduzir a sociedade, em parte ou no todo, no sentido da conservação ou da mudança das instituições sociais; têm, portanto, um projeto histórico relacionado com o Poder
10. Os partidos têm representatividade, em maior ou menor grau, na medida em que exprimem interesses e valores de segmentos sociais; por isso destacam, entre seus membros, os que disputam e exercem mandatos de representação, legislativa ou executiva. Os órgãos de comunicação agem como se também recebessem mandatos de representação popular, e alguns se proclamam explicitamente como detentores de mandatos. Oscilam .entre se auto suporem demiurgos da vontade divina ou mandatados do povo, e confundem o consumo dos seus produtos ou o índice de tiragem ou audiência com o voto popular depositado em urna.
Essas analogias não constituem apenas – como poderia parecer – um mero jogo de palavras, uma brincadeira semântica e retórica. Elas revelam um significado mais profundo do que as aparências formais indicam. Na verdade, elas dizem que os órgãos de comunicação se transformaram em entidades novas, diferentes do que eram em sua origem, distintas das demais instituições sociais, mas extremamente semelhantes a um determinado tipo dessas instituições sociais, que são os partidos políticos.
Se os órgãos não são partidos políticos na acepção rigorosa do termo, são, pelo menos, agentes partidários, entidades para-partidárias, únicas, sui generis. Comportam-se e agem como partidos políticos. Deixam de ser instituições da sociedade civil para se tornarem instituições da sociedade política. Procuram representar – mesmo sem mandato real ou delegação explícita e consciente – valores e interesses de segmentos da sociedade. E tentam fazer a intermediação entre a sociedade civil e o Estado, o Poder. É por essa razão que os principais órgãos de comunicação podem proclamar sua autonomia e sua independência, não só diante dos anunciantes como diante do governo e do Estado. Na realidade, esses grandes órgãos efetivamente são autônomos e independentes, em grande parte, em relação a outras formas de Poder. Mas não – como querem fazer crer – porque estejam acima dos conflitos de classe, da disputa do Poder ou das divergências partidárias Nem porque estejam a serviço do Brasil ou da parte do Brasil que constitui o seu específico leitorado. Mas sim porque são eles mesmos, em si, fonte original de Poder, entes político-partidários, e disputam o Poder maior sobre a sociedade em benefício dos seus próprios interesses e valores políticos. A frase publicitária utilizada por um desses grandes órgãos – “A Folha está de rabo preso com o leitor”- só tem seu verdadeiro significado desvendado quando recolocada de pé sobre o chão e lida com a re-inversão de seus termos: o leitor é que está de rabo preso com a Folha, por extensão, com todos os grandes órgãos de comunicação. Porque, efetivamente, é assim que os órgãos de comunicação se relacionam com os leitores, isto é, com a sociedade, com a população. Recriando a realidade à sua maneira e de acordo com seus interesses político-partidários, os órgãos de comunicação aprisionam seus leitores nesse círculo de ferro da realidade irreal, e sobre ele exercem todo o seu Poder. O Jornal Nacional faz plim-plim e milhões de brasileiros salivam no ato. A Folha, o Estado, o Jornal do Brasil, a Veja dizem alguma coisa e centenas de milhares de brasileiros abanam o rabo em sinal de assentimento e obediência.
Circunstância ou tendência?
Para finalizar esta exposição, e à guisa de conclusão geral, é preciso colocar algumas questões.
Até que ponto as características atuais da Imprensa brasileira constituem apenas uma situação transitória, temporária, circunstancial e conjuntural? Em que medida não representam uma excessiva reação à época da Ditadura Militar, em que a censura do Estado sobre a Imprensa a tornava quase totalmente inócua e estéril? Até que ponto não exprimem, por outro lado, o estado confuso e ambíguo da atual conjuntura geral do País, em que parece haver vazios institucionais e a dissolução das formas “convencionais” de Poder? Em que medida a própria Imprensa – quer pela ação de seus proprietários, quer pela dos jornalistas – não acabará por encontrar, de imediato, correções de rumo e redefinição de significados ou papéis?
Por outro lado, serão essas características indicadores de uma tendência histórica, de um avanço e de marcos inexoráveis, irredutíveis e irrecorríveis? Estaremos assistindo, de fato, ao nascimento de um novo tipo de jornalismo, de imprensa, de novos papéis, significados e funções sociais e políticas dos órgãos de comunicação?
Estaremos com efeito diante de um novo tipo, definitivo, sem retorno, do fazer jornalístico? De um novo tipo de Imprensa, que ganha em eficácia no exercício do poder político, mas perde em credibilidade, em confiabilidade, em dar resposta à necessidade social da busca da informação, do conhecimento da realidade? De um novo tipo de poder?
A primeira ordem de questões – que privilegiam o circunstancial e o provisório das características da Imprensa – pode encontrar respostas no campo imediato e pragmático da contra-reação, dos conflitos internos das redações, da luta sindical e prática do dia a dia.
Mas se estamos na perspectiva da segunda ordem de questões, isto é, na perspectiva de uma tendência histórica de mudanças decisivas e sem retorno, é fundamental antever também as principais transformações que necessariamente deverão efetuar-se no outro pólo da contradição nascente. Basicamente haverá a tendência, igualmente histórica, de a sociedade também mudar sua postura tradicional diante dos órgãos de comunicação. Essa mudança de postura provavelmente se dará em três planos. Como são os grandes empresários de comunicação – a Burguesia – que se situam na parte dominante da sociedade, é às classes dominadas que caberá o papel fundamental das transformações na visão do jornalismo pela população.
Num primeiro plano, as classes politicamente dominadas tenderão, cada vez mais a desmistificar o jornalismo e a Imprensa. Não mais terão motivos para acreditar ou confiar na Imprensa e a seguir suas orientações. Passarão a intensificar sua postura crítica, sua análise de conteúdo e forma, diante dos órgãos de comunicação. Através de seus setores mais organizados, as classes dominadas contestarão as informações jornalísticas, farão a comparação militante entre o real acontecido e o irreal comunicado, farão a denúncia sistemática da manipulação e da distorção. Tomarão como uma das suas principais tarefas de luta a desmistificação organizada da Imprensa e das empresas de comunicação.
No segundo plano, as classes dominadas tenderão a passar a um nível superior de defesa e contra-ataque, em relação à Imprensa. Passarão a tratar os órgãos como eles se apresentam e se comportam: isto é, como entes político-partidários, e não como instituições de informação e conhecimento, acima do Bem e do Mal, acima da luta de classes e distantes da disputa do Poder. Exigirão que esses novos e sui generis partidos políticos sejam tratados em níveis de equivalência com os demais partidos e demais instituições político-partidárias; tenham os mesmos direitos, sem regalias especiais, e sejam submetidos a diversas formas de controle público. Conseqüência inevitável será a revisão e reformulação de conceitos tradicionais como os de “liberdade de imprensa”, “liberdade de expressão”, etc. Evidentemente o grau de intensidade dessas mudanças estará condicionado pela correlação de forças, mas os alvos perseguidos provavelmente conduzirão a uma regulamentação rigorosa sobre toda a atividade de comunicação, como forma de garantir o controle público sobre as empresas jornalísticas.
No terceiro plano, as classes dominadas lutarão pela transformação da própria natureza dos meios de comunicação. Se os órgãos de comunicação passaram de instituições da sociedade civil para se tornarem instituições da sociedade política, se deixaram de ser órgãos de comunicação para se transformarem em entes político-partidários, não haverá mais razão de aceitá-los como institutos de direito privado, e deverão se transformar em institutos de direito público. Em outras palavras, a parte dominada da sociedade passará a questionar o regime de propriedade privada dos órgãos de comunicação.
A tendência poderá caminhar no sentido de vedar, ao empresário privado, a exploração desse setor de atividades. A comunicação, e principalmente a informação, passarão a ser objeto de exploração apenas por parte do Estado ou de instituições de direito público, sob controle público. A assunção, por parte do Estado, de toda a comunicação de massa e de toda a informação, também dependerá da conjuntura e da correlação de forças sociais. Para a parte dominada da sociedade ela é tão indesejável quanto a propriedade privada dos meios de comunicação. As classes dominadas, portanto, tenderão a lutar pela transformação dos órgãos privados e estatais em órgãos públicos, sob formas e mecanismos que evidentemente ainda estão por serem engendrados e desenvolvidos. E finalmente, então, o jornalismo poderá se libertar do seu pior inimigo: a Imprensa, tal como ela existe hoje.