Benedita da Silva
No Centenário da Abolição, a deputada Benedita da Silva (PT-RJ) avalia a situação dos negros no País, e mostra que a liberdade ainda está por construir.
Decorrido um século desde a abolição oficial da escravatura, pode-se afirmar hoje que os negros brasileiros estão livres?
Ao verificarmos a situação do negro hoje no Brasil é interessante rever três leis muito queridas pelo mito da democracia racial. Comecemos pela Lei do Ventre Livre. Mais de cem anos depois de editada, temos 36 milhões de crianças em estado de miséria absoluta, sem poder estudar e se preparar profissionalmente. A gratuidade do ensino atinge uma pequena parte das escolas. Temos verdadeiras fábricas de deformação infantil.
A segunda lei é a Lei do Sexagenário. Sem aposentadoria integral, os idosos são forçados a uma desumana sobrecarga de trabalho, após tanta contribuição que já deram para construir o Brasil. Além de não termos instituições de vivência e sim o que chamamos de “esperando a morte chegar”, grande parte dos nossos idosos permanece desassistida.
A terceira é a Lei Áurea. Diversos mecanismos fazem com que os negros libertos pela Lei Áurea não sejam tão livres assim. O governo republicano de 1889 a 1891, a pretexto de fazer uma faxina na história da Pátria, queimou os documentos sobre a escravidão negra no Brasil. Isto ajudou, desde o início, a ocultar a desigualdade racial. E, é lógico, escondeu vantagens e privilégios da população branca. Revendo a documentação existente sobre a raça negra, observamos a persistência desse ocultamento. Cem anos depois, o negro continua com os mesmos problemas: continua a grande maioria sem acesso à instrução, sem terra, e com seus valores culturais ora perseguidos ora aceitos pelo mito da democracia racial e, portanto, desfigurados. Mesmo com muita boa vontade, é evidente a discriminação. Há diferenças salariais e no acesso ao trabalho. Os negros formam hoje uma legião de despossuídos, constituindo a maioria dos desempregados e dos analfabetos.
O que é possível fazer agora no sentido de superar esse quadro de discriminação e desigualdade?
Buscar a plena consciência dos nossos direitos, respeitar as diferenças, reformular o ensino começando por assumir a existência da discriminação para poder superá-la. Rever a história do Brasil, identificando as diferentes contribuições nesta pluralidade étnica; resgatar o trabalho do negro, da mulher, do índio. No campo cultural, reivindicamos que o Estado respeite e propicie às manifestações culturais negras as mesmas condições dispensadas à cultura branca, a recuperação para o patrimônio cultural daquilo que se refere à identidade e memória dos negros. É preciso recuperar as terras dos antigos quilombos, dentro de uma verdadeira reforma agrária. Nós, do PT, estamos lutando na Constituinte para criar mecanismos efetivos para coibir e neutralizar os crimes de discriminação racial, tornando-os inafiançáveis. Defendemos também que o governo brasileiro não mantenha relações com países cujo sistema é o racismo. Enfim, se não introduzirmos mecanismos isonômicos, as desigualdades tenderão a perpetuar-se.
Qual é o significado do Centenário a Abolição para o conjunto da classe trabalhadora?
Cem anos de abolição registram para a classe trabalhadora cem anos de opressão. Cem anos em que o capitalismo selvagem tem açoitado as iniciativas populares, patrocinando o bloco do desespero: é favela crescendo, é criança morrendo, é mulher sendo violentada; se mata na fábrica, na favela, no campo. É isto aí, e muito mais. Mas os quatrocentos anos de opressão representam quatrocentos anos de resistência dos negros.
Trabalhadores negros, brancos, índios, mulheres, à luta. No peito, na raça, no grito!
Fonte: PT na Luta da Constituinte, nº 06, fevereiro de 1988, p. 04. Acervo: CSBH/FPA.
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