Quando Henry Kissinger morreu, aos 100 anos de idade, em 29 de novembro último, os meios de comunicação do mundo inteiro dedicaram incontáveis páginas e minutos de transmissão para lembrar a vida e a carreira de uma das figuras mais influentes da política internacional e da diplomacia dos Estados Unidos no século vinte. Na dita “grande imprensa”, a esmagadora maioria das matérias foi de celebração e de elogios, lembrando, por exemplo, a estratégia de abertura à China de Mao no início da década de 1970. Do golpe contra o governo de Salvador Allende no Chile aos bombardeios clandestinos da Camboja, houve, no máximo, alguma rápida referência aos capítulos “polémicos” – esse adjetivo que nada quer dizer- da vida do ex Conselheiro de Segurança Nacional e Secretário de Estado nas administrações dos presidentes republicanos Richard Nixon e Gerald Ford (entre 1969 e 1976). Os tons atuais são bem diferentes dos do inicio do século, quando Kissinger esteve na berlinda e quase acabou indiciado pela justiça de vários países.

Em 2002, tive o privilégio de escrever o prefácio do livro “O julgamento de Kissinger”, edição brasileira do livro “The trial of Henry Kissinger”, do ensaista britânico naturalizado estadunidense Christopher Hitchens, publicado pela Boitempo Editorial. Fui reler meu texto, um exercício potencialmente perigoso, a mais de vinte anos de distância: nem sempre ideias e pensamentos resistem bem ao teste do tempo. Neste caso, a releitura deixou claro quanto mudou, para pior, o clima político global.

Abaixo, vão os trechos principais do prefácio.

[…]The Trial of Henry Kissinger, publicado nos Estados Unidos em maio de 2001, é o resultado de meses de mergulho em pilhas de documentos secretos que acabavam de ser liberados pela administração Clinton – não por acaso, uma das primeiras providências de George W. Bush na Casa Branca foi mudar as regras de desclassificação dos arquivos oficiais. Baseado na nova documentação a que teve acesso, e na triagem da literatura já existente, Hitchens elaborou um verdadeiro dossiê de acusação contra os crimes perpetrados por Kissinger nos anos passados na Casa Branca […]. Naqueles sete longos anos, lembra Hitchens, Kissinger presidiu o Comitê encarregado de supervisionar todas as “operações encobertas” efetuadas pelos diversos organismos do governo – a começar pela CIA. Por isso, Kissinger, conhecido por ser detalhista ao extremo, não podia não saber das atividades de seus subordinados.

As acusações de Hitchens são pontuais, e se concentram em algumas questões específicas. As principais são:

  1. O assassínio deliberado de centenas de milhares de civis durante a guerra no Vietnã, quando Kissinger e Nixon mandaram, em segredo, bombardear a Camboja e o Laos – dois países com os quais os EUA não estavam em Guerra (calcula-se que, ao todo, esses bombardeios mataram quase 1 milhão de pessoas; Kissinger, ficou “excited” com os resultados);
  2. O suporte e as armas oferecidas, em 1971, ao golpe militar conduzido em Bangladesh pelo general Yahya Khan – a quem, em seguida, Kissinger agradeceria por sua “delicadeza e tato” – durante o qual foram chacinados centenas de milhares de hindus;
  3. O direto envolvimento dos EUA, em 1970, no assassinato do general René Schneider, o comandante das forças armadas chilenas que se declarara favorável à posse de Salvador Allende, e, em seguida, no golpe militar de 1973 (uma frase de Kissinger tornou-se tristemente célebre: “Não vejo porque temos que ficar parados enquanto um país se torna comunista pela irresponsabilidade de seu povo”);
  4. O apoio dado ao então ditador Suharto quando, em 1975, o exército da Indonésia invadiu Timor Leste, matando cerca de 200.000 civis.

A publicação do livro de Hitchens coincidiu com o início dos problemas de Kissinger. Em maio de 2001, a polícia francesa intimou Kissinger, hospedado num hotel de Paris, a depor no processo pela morte de cinco cidadãos franceses no Chile durante a ditadura de Pinochet. Para não ter que comparecer no tribunal, Kissinger deixou o país às pressas. Depois deste primeiro embaraço, Kissinger teria confiado a amigos não se sentir mais seguro para viajar ao exterior; de lá pra cá, no entanto, para ele o mundo se tornou cada vez menor.

Em julho de 2001, a justiça chilena enviou ao governo dos Estados Unidos uma lista de perguntas endereçadas a Kissinger sobre o assassinato do jornalista norte-americano Charles Horman durante o golpe militar de 1973 (o crime que inspirou o filme Missing, do diretor Costantin Costa-Gavras). Em agosto, um juiz federal argentino pediu aos EUA para interrogar Kissinger em relação à operação Condor, o acordo de cooperação entre os aparatos de repressão das ditaduras do Cone Sul, que na década de 70 trocavam informações e prisioneiros a serem desaparecidos. Em setembro, foi a vez de Washington: a família do general chileno René Schneider, morto em Santiago em 1970 por militares golpistas, entrou com uma ação judicial para pedir a Kissinger uma indenização judicial de U$ 3 milhões pelo envolvimento da CIA no crime, cometido para tentar impedir a posse do presidente Allende.

O último episódio, pelo menos até esta data, se deu no Brasil. Kissinger havia sido convidado para participar das comemorações do 65º aniversário da Congregação Israelita Paulista, em março de 2002. Na ocasião, conforme o rabino Henry Sobel confidenciou a jornalistas, o presidente Fernando Henrique Cardoso condecoraria Kissinger com a Ordem do Cruzeiro do Sul, a mais alta honorificência brasileira para um cidadão estrangeiro. Logo que a notícia se espalhou, começou a circular pela internet um abaixo-assinado preparado pela Consulta Popular – uma organização que reúne ativistas e intelectuais de esquerda – a partir do livro de Hitchens. O documento, endereçado a FHC por e-mail, definia “obscena e inaceitável” a eventual condecoração de Kissinger, e pedia para arquivar a idéia, em nome “da democracia, dos direitos humanos, da dignidade humana e da decência”. Não foi possível descobrir quantos e-mails chegaram ao Palácio do Planalto (quando consultada a respeito, a assessoria de imprensa da Presidência disse “desconhecer o assunto”), mas o número foi suficiente para que o governo brasileiro aconselhasse informalmente para cancelar a viagem – sugestão que Kissinger acatou no ato, alegando “imprevistos” em sua agenda.

Vale a pena tentar entender o que significa essa repentina atenção para com a atuação de Kissinger em sua antiga carreira: afinal, ele não tem mais cargos de governo há quase trinta anos, e ninguém pode dizer de ter descoberto somente agora como agia a diplomacia norte-americana naqueles tempos de guerra-fria.

O ponto de virada foi representado, em outubro de 1998, pela detenção em Londres do ex-ditador chileno Pinochet, em consequência de um mandado de prisão expedido pelo promotor espanhol Baltasar Garzón. Logo em seguida, o comitê judicial da Câmara dos Lordes, a mais alta corte britânica, tomou uma decisão que é apropriado definir histórica: determinou que Pinochet não tinha direito a imunidade como ex-presidente de um país soberano, já que os crimes pelos quais era acusado (assassinato, tortura e sequestro) não são atribuições de chefe de Estado. Os Lordes reconheceram que Pinochet não poderia ser processado no Chile – onde o regime militar concedeu a si próprio uma anistia completa antes de devolver o poder aos civis – mas afirmaram que esta anistia não se aplicava à lei britânica e às leis internacionais.A base jurídica para esta decisão se baseava na aplicação de um conceito relativamente novo, aplicado pela primeira vez no processo de Nuremberg aos líderes nazistas, após o fim da Segunda Guerra mundial: nenhum chefe, ou ex-chefe, de Estado tem imunidade no que se refere aos “crimes contra a humanidade”.

Trata-se de um conceito muito mais abrangente de que os tradicionais “crimes de guerra”, que implicam apenas na violação das convenções internacionais (a de Haia, de 1899 e de 1907, e a de Genebra, de 1949) relativas aos enfrentamentos militares entre países (e que de qualquer forma proíbem o uso da tortura, as execuções sumárias e os sequestros de pessoa). As atrocidades cometidas nas guerras civis ou na repressão interna contra os cidadãos de um determinado país, portanto, não podem ser punidas pelas leis que regulam os conflitos armados entre Estados. Daqui a necessidade de introduzir no ordenamento internacional normas que permitam de perseguir os crimes cometidos nessas situações.

Os primeiros passos nesta direção foram dados com a instituição do Tribunal penal internacional para o Ruanda, e do Tribunal penal internacional para a ex-Iugoslávia. O objetivo final é a instituição de um Tribunal penal internacional (TPI) permanente, conforme previsto no Estatuto de Roma de 1998. Para ser implementado, o TPI deveria ser ratificado por 60 países, e até agora conta com 52 assinaturas. No entanto, é quase impossível que o TPI se torne realidade no curto prazo, já que os Estados Unidos e várias outras nações importantes (China, Rússia, Austrália etc.) são, por distintas razões, contrárias à criação de uma corte de competência universal. Os EUA, particularmente, não admitem que seus soldados (ou chefes políticos, no caso do Kissinger) possam vir a ser julgados por terceiros. O império quer garantia de impunidade para os crimes de seus pretorianos.

Em seu último livro – Does America Need a Foreign Policy? (Simon & Schuster, 2001) – Kissinger tenta explicar sua posição contrária à “jurisdição universal”. Em sua opinião, a defesa dos direitos humanos devia, na época da Guerra fria, “servir principalmente como uma arma diplomática que permitisse aos cidadãos dos países comunistas combaterem contra o regime soviético”, mas não deve ser utilizada “como arma legal para ser usada contra os líderes políticos nos tribunais de terceiros países”. Mais adiante, Kissinger afirma que agora é fundamental impedir que “os princípios do direito sejam utilizados para fins políticos”. Parece uma defesa em causa própria. Até dentro dos Estados Unidos, no entanto, está crescendo a atenção em relação a este problema – embora, após os atentados de 11 de setembro de 2001, os desejos de vingança parecem ser maiores do que os de justiça. Em agosto do ano passado, a Village Voice, uma revista progressista de New York, publicou uma matéria de capa sobre Kissinger com o tíitulo “O Milosevic de Manhattan”. Como acontece às vezes com o jornalismo, aquela manchete conseguiu sintetizar em poucas palavras notícia, análise e o pulso da percepção de parcela importante da opinião pública. […]

O julgamento contra Slobodan Milosevic, ex-presidente da Iugoslávia, iniciou em Haia em fevereiro passado, e, salvo surpresas, deve terminar com a condenação do réu pelos crimes cometidos nas guerras dos Bálcãs. Trata-se, como no caso de Nuremberg, do processo dos vencedores contra a parte derrotada. Milosevic sem dúvida foi o responsável por inúmeros crimes, mas não mais do que os líderes croatas, bósnios e kosovaros. (Para voltar a Nuremberg: os nazistas foram responsáveis por um crime que não comporta adjetivos – o Holocausto – mas nenhum comandante das tropas Aliadas jamais foi processado pelos bombardeios indiscriminados das cidades alemãs que mataram desnecessariamente centenas de milhares de civis, para não falar das bombas atômicas lançadas contra Hiroshima e Nagasaki).

Ë difícil imaginar que Kissinger possa um dia se sentar no banco dos réus, em Haia ou em qualquer outro lugar. O valor do livro de Hitchens e das mobilizações contra Kissinger é outro: lembrar ao mundo que os valores de justiça devem ser realmente universais. Para evitar, como escreve Hitchens citando o filósofo grego Anacharis, que as leis sejam como teias de aranha: fortes os suficientes para deter os fracos. A alternativa é a barbárie.

……

Poucos meses depois da publicação do livro no Brasil, em março de 2003, os Estados Unidos e uma coalizão de países aliados invadiram o Iraque à revelia do Conselho de Segurança da ONU (portanto, com uma operação militar ilegal), inaugurando a longa e sangrenta estação da mal chamada “guerra ao terrorismo”, do uso unilateral da força por parte das grandes potências (da intervenção na Líbia à invasão da Ucrania), do ataque generalizado contra os mecanismos de proteção de direitos humanos da ONU, e da impotência do Tribunal Penal Internacional. A aversão de Kissinger à jurisdição universal dos direitos humanos prevaleceu. Pelo menos por enquanto, a barbárie ganhou.