Por Newton Lima

“A liberdade não é para aqueles que concordam conosco, mas para aqueles que têm ideias que odiamos” (Oliver Wendell Holmes, juiz da Suprema Corte dos EUA, 1929)

Alguns artistas tiveram um papel fundamental na luta pela liberdade de expressão no Brasil, principalmente no período conhecido como “os anos de chumbo”.

Em 1968, antes da decretação do AI-5, alguns deles denunciavam o arbítrio e o “terrorismo cultural” perpetrado pelo regime.

Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil estavam na vanguarda dessa luta pela liberdade. Hoje, no entanto, eles passaram a defender que suas biografias só podem ser publicadas com suas autorizações.

A Constituição de 1988 acabou com a censura à produção cultural e intelectual no país. O artigo 220 é claro: “Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social […] É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.

Mas, expulsa pela porta da frente, a censura – na sua pior forma, a prévia – voltou sorrateiramente em 2002, no Código Civil, sob o manto diáfano do direito à privacidade.

No intuito de proteger a privacidade do cidadão comum, os legisladores colocaram no mesmo patamar a pessoa física e a personalidade pública, dando a este ou a seus familiares o direito de vetar ou negociar a publicação de suas histórias.

Com isso, contrariaram a doutrina reconhecida de que uma personalidade, seja ela artista ou político, não tem o mesmo direito à privacidade de um cidadão comum.

Em países democráticos, uma pessoa, a partir do momento em que se expõe voluntariamente ao público – seja se candidatando a algum cargo eletivo, seja subindo aos palcos -, abdica de seu direito à privacidade absoluta.

Baseada no Código Civil, várias obras artísticas foram proibidas, deixadas de ser produzidas ou até retiradas de circulação. Algo totalmente absurdo, além de desnecessário, pois a lei maior protege as celebridades, impondo indenizações contra calúnias e difamações para a reparação da verdade, da imagem e da honra eventualmente ofendidas.

Com o objetivo de corrigir essa anomalia, elaborei o projeto de lei nº 393/11, na Câmara Federal, que retira a exigência de autorização para publicação de obras biográficas.

Alguns argumentos apresentados para defender a censura a biografias têm aspectos kafkianos. Por exemplo, com o fim da ditatorial Lei de Imprensa, ninguém terá problemas se escrever sobre a vida de uma celebridade ou de um político e publicá-la periodicamente em revistas ou jornais. Mas, se a mesma história for compilada na forma de livro, poderá, com base no Código Civil, ter sua comercialização impedida.

E houve quem sugerisse que os artistas tenham participação nos honorários de biógrafos. É como se dissessem: podem falar livremente sobre a minha vida, desde que me paguem para isso.

Roberto Carlos, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque foram e são protagonistas da história deste país. Criaram costumes, influenciaram gerações e contestaram a ditadura. Impedir que suas biografias sejam livremente publicadas é mutilar a historiografia do país.

Já fomos privados de biografias como as de Roberto Carlos e do escritor Guimarães Rosa, entre outros, mas, a prevalecer a legislação atual, a história de ditadores como o general Emílio Garrastazu Médici, por exemplo, se autorizada por sua família, o tornaria merecedor do prêmio Nobel da Paz.

Já que a Constituição Federal garante que é proibido proibir a livre manifestação do pensamento, livremo-nos imediatamente dessa chaga legislativa antes que ela contamine outras conquistas do Estado de Direito.

Newton Lima é deputado federal (PT-SP), ex-prefeito de São Carlos (SP) e ex-reitor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Publicado originalmente em Folha de São Paulo, 24 de outubro de 2013.