Há vinte anos os brasileiros comprometidos com a Liberdade e a Justiça tiveram um momento de felicidade, pois uma Lei de Anistia iria permitir que compatriotas idealistas, que tinham sido punidos pela única razão de lutarem por esses valores, deixassem os presídios políticos ou voltassem do exílio, reunindo-se aos que tinham permanecido na resistência democrática.

Eu tinha sido um desses resistentes, tendo sofrido uma prisão e um seqüestro por minha ousadia de não transigir e não calar, trabalhando com valorosos companheiros, na Comissão Pontifícia Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, sob a liderança firme e corajosa de D. Paulo Evaristo Arns, para localizar desaparecidos, salvar torturados, libertar patriotas, vítimas de prisão arbitrária, pregando sempre a restauração democrática. A possibilidade de anistia era um reforço em nossa esperança de reintegrar brasileiros de boa vontade no esforço comum visando a implantação de uma ordem social justa, baseada no reconhecimento da liberdade e da igualdade como direitos fundamentais de toda pessoa humana e regida por uma Constituição democrática.

Visando a conquista da anistia percorri o Brasil e publiquei muitos artigos, fazendo palestras e participando de debates, sempre sob vigilância da polícia política e da censura, mas procurando ampliar os espaços, explicando o sentido jurídico da anistia e discutindo seu alcance, uma vez que se falava em anistia recíproca, beneficiando perseguidos mas também perseguidores. Nós sabíamos que seria inevitável aceitar limitações e admitir que criminosos participantes do governo ou protegidos por ele escapassem da punição que mereciam por justiça, mas considerávamos conveniente aceitar essa distorção, pelo benefício que resultaria aos perseguidos e às suas famílias e pela perspectiva de que teríamos ao nosso lado companheiros de indiscutível vocação democrática e amadurecidos pela experiência.

Eu tinha consciência de que, uma vez implantada uma ordem livre e assegurada a diversidade de opiniões e ações, muitos daqueles por quem nós lutávamos estariam em campo diferente do nosso, porque nossas convicções políticas eram divergentes e, em certo sentido, até mesmo opostas. Mas para mim isso era parte de um sistema democrático e eu tinha convicção de que no essencial nossos objetivos eram comuns, variando apenas os caminhos para chegar a eles. Eu tinha também a certeza, que ainda mantenho integralmente, de que um regime de liberdade, que inclui e respeita o direito de divergência, é melhor do que qualquer ditadura.

A par disso, eu estava convencido de que o povo brasileiro já tinha tomado consciência de que as tremendas violências praticadas por brasileiros contra brasileiros só beneficiavam, injustamente, um pequeno número de privilegiados, desejosos de poder arbitrário, de ostentação de força e de vantagens econômicas sem nenhuma limitação moral e sem qualquer preocupação social ou patriótica. Eu acreditava, também, que a presença daqueles lutadores, no ambiente brasileiro, iria significar um reforço significativo na pressão política e psicológica pelo apressamento da restauração constitucional e democrática. Seria difícil manter um sistema autoritário com tantos militantes democratas vivendo em liberdade no País.

A idéia inicial de anistia era muito genérica e resultou no lema "anistia ampla, geral e irrestrita", mas logo se percebeu que seria necessária uma confrontação de propostas, pois os que ainda mantinham o comando político logo admitiram que seria impossível ignorar a proposta dos democratas, mas perceberam que uma superioridade de força lhes dava um poder de negociação e cuidaram de usar a idéia generosa de anistia, para dizer que não seria justo beneficiar somente os presos políticos e exilados, devendo-se dar a garantia de impunidade àqueles que, segundo eles, movidos por objetivos patrióticos e para defender o Brasil do perigo comunista, tinham combatido a subversão, prendendo e torturando os inimigos do regime. Nasceu assim a proposta de "anistia recíproca".

De início, procurou-se limitar a anistia aos perseguidos políticos, dizendo-se que não deveriam ser anistiados os que tivessem cometido "crimes de sangue". Isso foi, afinal, sintetizado numa enumeração de crimes que não seriam anistiados, compreendendo, segundo a lei da anistia (Lei nº 6683, de 28 de agosto de 1979), os que tivessem sido condenados " pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal". Em sentido oposto, beneficiando os que abusando de uma função pública tivessem cometido crimes, foram abrangidos os que tivessem cometido crimes políticos ou "conexos" com esses. Assim, aquele que matou alguém numa sessão de tortura estaria anistiado porque seu principal objetivo era combater um adversário político. O homicídio seria apenas conexo de outro crime, a ação arbitrária por motivos políticos, que seria o principal.

Assim se chegou à Lei da Anistia. Foi bom, efetivamente, ter apressado o retorno dos idealistas, que tinham arriscado sua liberdade, sua carreira profissional a até sua vida, para livrar o Brasil da ditadura. Muitos criminosos, incluindo assassinos e torturadores, que a história não absolverá, ficaram livres da condenação por um juiz de tribunal. Por outro lado, houve supostos idealistas e patriotas que se revelaram meros oportunistas, que as circunstâncias de então faziam crer que se tratasse de pessoas donas e respeitáveis e que, bem longe disso, tiraram proveito da imagem de vítimas para obter proveitos pessoais e não tardaram em se aliar aos arbitrários e corruptos que diziam combater. Hoje se sabe que houve muitos exilados de luxo, que apenas fugiram da luta ou foram punidos pela cegueira e intolerância dos golpistas. Alguns desses já estão desmascarados e deverão sofrer a mais rigorosa condenação, que nenhuma anistia poderá apagar.

 *Dalmo Dallari é jurista e professor catedrático da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco da USP.

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