Em agosto de 1979 estava presa no Uruguai, na prisão política de mulheres conhecida como "Punta Rieles". É curioso como naquele lugar, naquela prisão feita para ficar alheia às mudanças e separada de tudo o que fosse percebido como "político", instituição total e austera onde a informação era censurada, controlada, cercada de olhares vigilantes por todos os lados, os menores sopros de mudança e liberdade entravam! Entravam fragmentados, na forma de um pedaço de jornal entrevisto, de uma fala audaz em uma visita que, com isso, corria o risco de ser interrompida, na indiscrição de algum oficial muito confiante de seu poder… De fato, não ficamos sabendo do movimento pela anistia, da mobilização que acontecia. Sabíamos que algo mudava sem saber sua exata dimensão. "As prisões políticas não são feitas para durar": todos o sabíamos. Mas essa "duração" pode durar tanto tempo! A prisão política no Uruguai durou de 1972 a 1984. Os militares que comandavam a repressão completavam: como as prisões políticas não são feitas para durar, precisamos aproveitar o tempo que temos para destruí-los a todos. Não contavam com a resistência cotidiana de mulheres e homens que, mesmo presos, eram "moinhos incansáveis". Uma das formas da resistência era justamente essa: não deixar que o segredo dominasse, que a separação com o mundo de "fora" fosse vitoriosa, que a informação deixasse de circular. A importância do Brasil – na época, com a luta pelo fim da ditadura e a anistia – para os demais países de nossa América foi (e é) enorme: o que aqui acontece é cercado de atenção, atenção inversamente proporcional a que se dá aqui, no Brasil, aos nossos países vizinhos. O Brasil mudando, significava esperança para os países que viviam situações similares.

É claro que fui beneficiada pelo grande movimento da Anistia no Brasil. Fui liberada por todos os brasileiros em 14 de abril de 1980 e, junto comigo, saíram da prisão todos os estrangeiros que estavam presos no Uruguai. A volta ao Brasil foi uma festa, uma festa de liberdade. Teve hino nacional, bandeiras, gritos, muitos abraços, aquela emoção! Como homenagear todos esses cidadãos e cidadãs? Talvez pensando no Mouzar Benedito, sempre presente; talvez pensando no nosso grande Carlito Maia que durante um ano, todos os dias 14, mandou para nossa casa cravos vermelhos. Luz, fogo, esperança…até hoje. Pensando nas irmãs do Santa Maria, na irmã Michael. Em Dom Paulo, figura luminosa e iluminadora sempre presente.

Penso que o movimento pela anistia foi um dos momentos de construção ou constituição da república no Brasil, república que até hoje estamos tentando fundar, república de cidadãos e cidadãs, livre, fraterna e igualitária. Outros momentos igualmente fundadores nessa direção foram o das "diretas-já" e o que resultou no impeachment de Fernando Collor. Cada deles foi muito importante, mesmo que depois, aparentemente, tudo aparentemente se dilua no ar, se dissolva novamente no predomínio da injustiça. Foram passos, foram raros momentos de felicidade pública neste país tão sufocado por infelicidade.

A história que vivi no Brasil nestes 20 anos nos mostra que as transformações profundas são difíceis, são lentas, percorrem as gerações e, principalmente, que vale a pena lutar por elas.

 *Flávia Schilling, ex-presa política brasileira, no Uruguai, durante 7 anos e meio.

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