Alguns casos de crianças argentinas desaparecidas
Por Perseu Abramo
No dia 23 de fevereiro de 1977 um numeroso grupo de pessoas que se dizia pertencer às forças de segurança argentinas invadiram, cerca das oito e meia da noite, o consultório dentário da Dra. Campano, numa rua da cidade de La Plata, na Argentina. Prenderam Hector Carlos Baratti e sua mulher Elena de la Cuadra, de 22 anos de idade, e que se encontrava grávida de quatro ou cinco meses. Os vizinhos viram Elena ser colocada num carro da polícia e das forças armadas, mas não puderam dizer para onde ela foi conduzida. A mãe de Elena, Alicia Zubaznabar de la Cuadra, desde então tem empreendido numerosas buscas, para descobrir o paradeiro do casal e da criança, que deveria ter nascido por volta de julho daquele ano. Até agora, não conseguiu saber nada.
No dia 11 de maio de 1977 um grupo de pessoas fortemente armadas que, segundo testemunhos, pertenciam a organismos de segurança, seqüestraram numa via pública da cidade de La Plata, Alejandro Efrain Ford, 20 anos de idade, e sua mulher Monica Edith de Osalo de Ford, 19 anos de idade, e que estava grávida de dois meses. A mãe de Monica, Elba Rosa Montiveros Urquiza de Ford, desde então realizou numerosas investigações para descobrir onde estavam sua filha, o genro e o neto, que deveria ter nascido por volta de dezembro. Elba Rosa chegou a entregar certas quantias de dinheiro a pessoas que se diziam vinculadas aos órgãos de segurança, para obter maiores informações mas nada conseguiu, a não ser a indicação não confirmada de que sua filha tinha dado à luz. Posteriormente, conseguiu saber que seu genro teria sido levado ao Norte e estaria trabalhando como fotógrafo do Exército, num quartel ou num lugar de concentração de presos. Mas nada mais ficou sabendo da filha e do neto presumivelmente nascido no cárcere.
Esses dois casos são alguns em centenas, pacientemente recolhidos e relatados por parentes — geralmente avós — de crianças "desaparecidas" pela repressão argentina nos últimos anos.
Os relatos, com listas e provas documentais abundantes, como cédulas de identidade, xerox de requerimentos às autoridades militares e jurídicas etc, foram recentemente apresentadas no Encontro promovido pela Anistia Internacional em Costa Rica.
No Encontro de Costa Rica, realizado no começo de janeiro, diante dessas e de tantas outras denúncias de repressão nos países do Cone Sul, os participantes decidiram montar uma Alta Corte Latino-Americana, constituída de advogados e personalidades, para apurar todas as arbitrariedades que vêm se acumulando há tempos. O representante do Brasil nessa Corte — que nas próximas semanas deverá realizar sua primeira reunião preparatória — é o presidente da OAB, Seabra Fagundes.
Muitas foram as crianças seqüestradas
O "desaparecimento" de opositores aos regimes ditatoriais não é novidade na América Latina. Vários países, inclusive o Brasil, e, mais notadamente, Argentina, Uruguai e Paraguai, conhecem essa prática dos órgãos de repressão, que nos últimos anos, seqüestraram, prenderam, torturaram e assassinaram numerosos cidadãos e não assumiram as suas mortes.
Na Argentina, porém, as vítimas de seqüestras e "desaparecimentos" não tem sido apenas as pessoas adultas, mas também as crianças, já nascidas antes do seqüestro, ou as que vêm a nascer nos cárceres políticos. Várias denúncias dão conta, inclusive, de que muitas das crianças nascidas nos presídios políticos são "doadas", sem conhecimento dos quais ou outros parentes, a terceiros, inclusive casais de militares.
Essa situação é que provocou, desde o começo, uma onda de protesto das mães e avós, que se reuniram por diversas vezes na "Plaza de Mayo", em Buenos Aires: são as "locas de la Plaza de Mayo", como sarcasticamente as chama a ditadura argentina.
"Somos um grupo de avós — diz um manifesto recentemente distribuído e assinado pelas "Avós de Netos Desaparecidos" — que procuramos nossos netos. Fizemo-nos conhecidas percorrendo instituições, Ministérios, a Praça de Maio, as ante-salas dos juizes. Sempre tentando obter informações de nossos entes queridos. Já temos a dor de nossos filhos "desaparecidos" e a isso se soma a angústia por nossos netos, cujo paradeiro ignoramos, apesar de nossa busca incessante".
A ditadura argentina, cinicamente, não nega esses "desaparecimentos". Ao contrário, admite-os, mas procura atribuí-los a desmandos e descontroles iniciais, dando a entender que essa fase já estaria superada. Nisso, aliás, a ditadura argentina não é nem um pouco original, e reproduz o mesmo modelo de hipocrisia já tantas vezes ouvido no Brasil.
No final de dezembro do ano passado, "O Clarin", de Buenos Aires, reproduziu uma entrevista concedida pelo general Videla, chefe do Estado argentino, ao jornal espanhol "El Imparcial", de direita.
"A luta contra o terrorismo — diz o ditador argentino — foi uma autêntica guerra, com sua seqüela, dolorosa e inevitável, de mortos, prisioneiros e desaparecidos. Nessa guerra, como em todas, houve sim, desaparecidos".
Mas, acrescenta o ditador argentino, segundo o jornal espanhol, "sobre o assunto dos desaparecimentos dizem-se muitas mentiras, mediante campanhas perfeitamente orquestradas"; e, ainda de acordo com Videla, os desaparecidos "são as vítimas que a própria subversão, o próprio terrorismo, cobrou entre seus dissidentes; outros, que passaram para a clandestinidade, e um número importante de mortos não identificados. E aceito, também, que haja um número de desaparecidos, produto de exageros e descontroles iniciais".
Palavras, expressões e raciocínios que os leitores brasileiros já ouviram muitas vezes dos generais de 64, aqui mesmo no Brasil. Mas que não resistem ao confronto com o que dizem as avós argentinas, no manifesto já citado:
"Há muitas crianças seqüestradas na Argentina. Algumas desaparecidas com seus pais quando esses foram levados pelas forças de segurança. Outros foram tirados de suas casas. Têm idades diversas: desde crianças de meses até as que já estão chegando à puberdade. Estamos procurando, também, os bebês que nasceram durante o cativeiro de suas jovens mães, levadas em estado de gravidez, desde os primeiros meses de gestação até quase o momento do parto. Não se respeitou nada. Foram arrancados brutalmente de seus lares".
Bebês nascem nos cárceres da repressão
É difícil acreditar — como quer o general Videla — que bebês de meses tenham sido "cobrados" como dissidentes pelas organizações políticas. Vejamos mais alguns casos, extraídos da relação enviada pelas avós argentinas ao Encontro de Costa Rica:
"Crianças nascidas de mães presas e desaparecidas:
"Neta ou neto: nascimento que deverá ter ocorrido, em parto normal, na segunda quinzena de agosto de 1976. Filho de Beatriz Haydée Neuhaus de Martinis e de Juan Francisco Martinis. Presos e desaparecidos em 16/03/76, em Ramos Mejia, Província de Buenos Aires. Idade Atual: três anos e um mês.
"Neto ou neta: nascimento que deverá ter ocorrido, em parto normal, na primeira quinzena de setembro de 1977. Seus nomes são Hectore Alberto, se for menino, ou Alicia Cristina, se for menina. Filho de Liliana Graciela Castillo Barrios de Ovejero e Hector Ovejero. Presos e desaparecidos em 05/05/77 na localidade de San Justo (Província de Buenos Aires). Idade atual: dois anos.
"Neto ou neta: nascimento que deverá ter ocorrido, em parto normal, em meados de setembro de 1977: filho de Maria Lemos de Lavalle e de Gustavo Antonio Lavalle. Presos e desaparecidos em 20/07/77 no bairro de San Fernando — José C. Paz (Buenos Aires). Idade atual: dois anos".
Ou, senão:
"Crianças desaparecidas de seus lares e com seus pais:
"Neta: Clara Anahi Mariani, nascida em 12/08/76. Desaparecida de seu lar destruído em 24/11/76, Rua 30, no 1.136 (entre 55 e 56) da cidade de La Plata. Filha de Diana Esmeralda Teruggi de Mariani e de Daniel Enrique Mariani, mortos. Idade atual: três anos e um mês".
Outro:
"Neto: Gabriel Matias Cevasco: nascido em 14/10/76. Desaparecido nos braços da sua mãe às 14 horas do dia 11 de janeiro de 1977, ao sair ela do trabalho, na fábrica têxtil "San Andrés". Filho de Maria Delia Leiva e de Gabriel Matias Cevasco. Idade atual: dois anos e onze meses".
"Neta e neta: Tatiana Ruarte (Tati): nascida em 11/07/73. Desaparecida com seus pais Alberto Javier Jotar e Mirta Graciela Britos, e com sua irmãzinha, depois de 17/10/77. Idade atual: seis anos e dois meses. E Laura Malena Jotar, nascida em 12/08/77 desaparecida depois de 17/10/77, com sua irmãzinha Tatiana Ruarte e com seus pais. Idade atual: dois anos e um mês".
Foram dadas?
Para quem?
Onde? Porque?
A lista é infindável. Raríssimos são os casos em que as crianças são localizadas, como ocorreu no ano passado, quando, graças às denúncias das avós argentinas e da cooperação da Igreja de São Paulo, o advogado Luiz Eduardo Greenhalgh e o jornalista Ricardo de Carvalho conseguiram descobrir duas delas no Chile.
Na sua grande maioria, as crianças argentinas continuam desaparecidas, e seus parentes não têm quaisquer informações sobre se estão vivas ou mortas, ou sobre seu estado de saúde física e psíquica.
E isso lhes aumenta a angústia: eis o que dizem, nos seus documentos.
"Há muitas crianças que foram testemunhas de cenas de violência; presenciaram suas casas sendo saqueadas, seus pais recebendo maus tratos, e, às vezes, viram como os pais foram feridos ou mortos. Foram testemunhas, em sua curta vida, de episódios brutais, e alguns tiveram o mesmo destino dos adultos "desaparecidos". Às vezes, alguns poucos voltaram, depois de um período de prisão. Outros ficaram ao cuidado de vizinhos ou familiares, que devem suportar as incessantes perguntas: Quando o papai volta? Porque a mamãe não volta?…"
E continua o manifesto das avós argentinas:
"Que destino tiveram as crianças "desaparecidas"? Temos o caso recente das crianças que apareceram no Chile há pouco tempo, e haviam sido seqüestradas em nosso país em setembro de 1976. Tememos que a mesma sorte tenha atingido outros. As crianças foram afastadas de suas legítimas famílias. Estão em orfanatos? Onde? Por que? Foram dadas? A quem?"
Elsa Beatriz Pavós de Aguilar é uma dessas avós.
Eis o que ela conta: "Minha neta Paula Eva Logares, tinha 23 meses no momento do desaparecimento, que ocorreu no dia 18 de maio de 1978, em Montevidéu, no Uruguai. Ela tinha saído de casa com os pais para dirigir-se ao Parque Rodó. Nunca mais voltaram. Fiz averiguações e descobri que os três foram seqüestrados ou presos por um grupo de gente armada, cerca das três e meia da tarde, na avenida Fernandez Crespon, diante do número 1757. As testemunhas dizem que o pai foi conduzido num carro e a mãe e a filha em outro. A menina é filha de Claudio Ernesto Logares e Monica Sofia Grispon".
A avó conta o que fez para tentar localizar os seqüestradores:
"A denúncia foi feita na estação de rádio da polícia, no Departamento de Polícia de Montevidéu; depois, na Chefia de Vigilância de Montevidéu, diante do comissário José Marques, que, no dia 20 de maio, fez a denúncia formal do desaparecimento. Fez-se a denúncia, também, na direção nacional da polícia de Uruguai. Sem nenhum resultado positivo. Levou-se outra denúncia ao general Rapela, chefe do Estado Maior Conjunto das Forças Armadas do Uruguai. Eu fui, pessoalmente a escolas, juizes, hospitais, polícia e a todos os lugares onde fosse possível encontrar minha neta, e até hoje tudo foi infrutífero. Fiz essas buscas no Uruguai e na Argentina, na dúvida se o seqüestro havia sido determinado pelas autoridades argentinas, pois os três desaparecidos são de nacionalidade argentina".
Relatos como esse são inúmeros e engrossam os dossiês que estão sendo recolhidos por advogados brasileiros e de outros países latino-americanos. Esses relatórios, e ainda muitos outros, sobre a repressão no Cone Sul, começarão a ser estudados pela Alta Corte de Direitos Humanos, recentemente criada no Encontro de Costa Rica.
A OEA sabia, mas de nada adiantou
Até agora, todavia, os organismos internacionais têm se mostrado imponentes para desvendar esses crimes da ditadura argentina, como das ditaduras dos demais países latino-americanos.
Vale a pena transcrever na íntegra o relato feito em La Plata, no dia 09 de dezembro do ano passado, por Hipólito Marco A. Tolosa:
"Maria Rosa Ana Tolosa de Reggiardo. O caso desta jovem mãe de um filho varão (de dois anos e meio de idade) deve ser relatado junto com o de seu marido e de sua sogra, de maneira que apareçam as quatro pessoas, vítimas da arbitrariedade governamental, cometida contra o grupo familiar.
"Ao cair da tarde, de 8 de fevereiro de 1977, no domicílio da família Reggiardo, rua Monteagudo, 199, cidade de Florêncio Varela, Província de Buenos Aires, e após prévia interrupção do trânsito na região, irrompeu uma numerosa equipe das forças repressivas conjuntas, cercando a casa, seqüestrando sem ordem legal a senhora Antonia Oldani de Reggiardo (de 57 anos de idade), a quem colocaram numa viatura oficial.
"Na primeira hora da manhã seguinte (09/02/77) as mesmas forças invadiram violentamente, sem ordem legal, a fábrica "Hemigraf", rua Bouchard, 1078, Lanús Leste, Província de Buenos Aires, local de trabalho do filho de Antonia, Juan Enrique Reggiardo Oldani (24 anos de idade), a quem prenderam, castigaram brutalmente e seqüestraram, levando-o dentro de uma viatura oficial.
"Nos fins de fevereiro ou princípios de março de 1977, na casa paterna de Maria Rosa recebeu-se um aviso telefônico, indicando que a jovem (grávida), junto com seu marido Juan Enrique, se encontravam presos em um campo de prisioneiros secreto, que o Exército Argentino mantinha na localidade de Arana, perto de La Plata. O informante assegurava que Maria Rosa calculava dar à luz no mês de maio e pedia à família que buscasse auxílio no Vicariato Geral das Forças Armadas, que funciona no Edifício Libertad, na Capital Federal.
"A esse lugar foi sem demora o pai de Maria Rosa, conseguindo que o monsenhor Emio Gracelli (secretário familiar do falecido Cardeal Antonio Caggiano e também secretário da citada Vicaría Castrense, a cargo do arcebispo Adolfo Tortolo) fizesse a averiguação correspondente, depois da qual confirmou ao advogado Hipolito Marco Tolosa que a jovem se encontrava efetivamente grávida, presa e incomunicável, junto com seu marido Juan Enrique, no aludido campo secreto, à disposição das autoridades militares.
"Nos primeiros dias de maio de 1977, na casa da família Tolosa, na cidade de La Plata, recebeu-se uma chamada telefônica de uma sobrinha do Dr. Hipolito Marco Tolosa (a qual é casada com um oficial do Exército, nessa época em serviço ativo no Regimento de Comunicações da localidade de City Bell, próxima de La Plata), informando que Maria Rosa havia dado à luz um filho de sexo masculino, sendo satisfatório o estado de saúde da mãe e do filho.
"Os recursos de habeas corpus, oportunamente interpostos em favor das três pessoas maiores seqüestradas pelo Governo de força, e da criança nascida no cárcere castrense, deram resultado negativo, por terem os representantes da força se negado a dar informações à Justiça.
A Corte vai apurar todos esses casos
A Organização dos Estados Americanos tomou conhecimento das violências cometidas contra os quatro prisioneiros (entre os quais se inclui um menor de dois anos e meio de idade), de nenhum dos quais os familiares têm notícias seguras após o nascimento do primogênito de Maria Rosa. Maria Rosa Ana Tolosa nasceu em 31 de dezembro de 1952, tem documento de identidade ("libreta civica") 10558917, sendo filha legítima de Martha Penela, argentina, e de Hipólito Marco Aurélio Tolosa, também argentino, com residência na cidade de La Plata, rua 58, número 340, telefone 2-1313. O presente relato é redigido e assinado, sob responsabilidade, pelo pai de Maria Rosa Ana Tolosa".
Entre os refugiados argentinos que se espalharam por alguns países da América Latina, inclusive no Brasil, correm versões — ainda não comprovadas com documentos — de que muitas das crianças desaparecidas, das que nasceram nos cárceres políticos, estariam sendo doadas a casais de militares sem filhos.
Essa versão, que é sustentada por várias avós, foi levada aos participantes do Encontro de Costa Rica, e deverá ser objeto de algumas das muitas investigações que a Corte Latino-Americana de Direitos Humanos pretende fazer. Se se comprovar, poderá dar origem a processos judiciais baseados em vários artigos da Declaração de Direitos Humanos, podendo, até, ser levada à ONU. Por outro lado, organizações ligadas à Igreja Católica e às Igrejas Protestantes na América Latina também estão empenhadas em investigar e denunciar essas violações, não só as que ocorreram na Argentina, como as que são freqüentes no Uruguai e no Paraguai, e que também estão acontecendo na Colômbia e em outros países.
Na primeira reunião preparatória da Corte Latino-Americana, que deverá realizar-se no Brasil brevemente, esses casos serão abordados, e sabe-se que numerosos advogados brasileiros, ligados às entidades de direitos humanos, estão dispostos a dar sua contribuição para deslindar os liames que vinculam os órgãos repressivos do Cone Sul, a fim de promover uma ampla campanha de opinião pública que acabe de vez com essas práticas violentas e brutais.