Manuscrito de Perseu Abramo

 

Outubro/novembro de 1979

A primeira parte deste documento constitui um relato dos pontos discutidos na reunião ampliada da Coordenação Geral do CBA/SP, realizada em 21/10/79. Esta segunda parte desenvolve alguns pontos de discussão política, sobre os quais se espera que os representantes de entidades e grupos de trabalho se pronunciem na próxima reunião ampliada marcada para 11/11/79.

A conjuntura política nacional deverá sofrer sensíveis modificações até 1982: a reformulação partidária, a formação de candidaturas a postos proporcionais e majoritários, a intensificação da crise econômica e o conseqüente aumento dos movimentos reivindicatórios, as previsíveis contradições entre setores das classes dominantes etc. Por outro lado, há indícios de que a maioria dos que ainda estão presos venham a ser libertados, ou por adequação de penas ou em função de outras medidas legais; e, muito provavelmente, deverão voltar ao Brasil quase todos os que ainda se encontram exilados. Ao mesmo tempo, a Ditadura continuará procurando institucionalizar-se cada vez mais, o que a levará a fazer concessões a setores das classes médias e mesmo a setores populares.

Esse quadro indica que, não obstante haja consenso sobre a necessidade de continuar a luta por Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, essa continuidade obrigará à adoção de novas formas de luta, ao aprofundamento das bandeiras gerais até aqui empunhadas e à procura de novas formas organizacionais que atendam a novos requisitos políticos.

No momento, a continuidade da luta pode dar-se em torno dos cinco eixos principais, já referidos na primeira parte do documento: presos, exilados, mortos e desaparecidos, reintegração e fim do aparato repressor. Mas o que acontecerá quando os novos eventos começarem a tornar vazias essas bandeiras? Quando, por exemplo, todos ou quase todos os presos forem libertados? Será possível manter as lutas de anistia em torno de apenas um ou poucos presos políticos? E quando tiverem voltado ao Brasil todos ou quase todos os exilados? Sobre tais questões, e outras semelhantes, deve haver um amplo movimento de reflexão coletiva e organizada no interior das entidades vinculadas à luta pela anistia, para que se possa prosseguir unitariamente essas campanhas.

Em outra ordem de pensamento, outras questões também merecem reflexão: até que ponto, por exemplo, a reformulação partidária que se aproxima não colocará novos problemas para a frente política em que se têm constituído os movimentos de anistia em todo o País, notadamente o CBA/SP? Como conciliar a necessidade de se manter a frente política do CBA/SP, constituído por representação de entidades, e o fato inelutável de que já estão se organizando os partidos políticos, com ou sem expressão eleitoral? Por outro lado, não tenderão os partidos a assumir parte das lutas que vinham sendo travadas pelos movimentos de anistia? Não procurarão os partidos políticos chamar a si a tarefa de libertar os seus presos, trazer de volta os seus exilados, responsabilizar os torturadores de seus correligionários e procurar reintegrar na vida política os seus egressos da prisão ou da clandestinidade? De que forma poderão os movimentos de anistia ligar-se a essas lutas partidárias de anistia sem perder seu caráter de frente política?

As próprias associações da sociedade civil e entidades de setores populares em que se assenta a atual estrutura do CBA/SP poderão tender a modificar sua intensidade de luta e seu campo de ação, diante da dupla mudança de conjuntura representada pela existência de novos partidos e pelo aumento dos movimentos reivindicatórios. Isso não significará uma mudança na composição do CBA/SP? Como conduzir essa mudança de maneira a fortalecer o CBA/SP?

Certamente também ocorrerão modificações no próprio relacionamento entre os CBAs e a sociedade civil e os setores populares. Até agora, os CBAs vinham se constituindo quase no único fórum em que certos temas políticos podiam ser apresentados, debatidos e encaminhados. A partir da existência de novos partidos, ou de movimentos políticos pré-partidários, esse fórum em parte será deslocado para esses instrumentos novos, de resto mais qualificados que os CBAs para desenvolver certas questões. A própria questão central da liberdade de organização partidária é um bom exemplo: embora a defesa dessa liberdade seja um dos pontos de princípio dos CBAs, até que ponto os CBAs poderão constituir-se no fórum mais adequado para discussão dessa questão, em que pese o seu caráter de frente? Ou, em outras palavras, até que ponto as organizações partidárias considerarão os CBAs um interlocutor válido para com elas discutir essas questões?

Outra decorrência quase imediata da formação de novos partidos é o remanejamento de militantes. Os CBAs concentraram, sabidamente, até agora, a militância de numerosas pessoas que, na luta pela anistia, encontravam a única forma de exercer a atividade política. Com a criação de novos partidos políticos, esse quadro começa a mudar. Principalmente nestes três próximos anos, a tarefa de construção partidária vai absorver a maior parte da energia militante disponível. De outro lado, continuarão existindo pessoas dispostas a exercer a atividade política não-partidária e disponíveis para os movimentos de anistia. Essas questões deverão orientar a arregimentação e a organização dos movimentos de anistia , daqui por diante.

O relacionamento dos CBAs com as entidades que os compõem também deve ser revisto: a experiência tem demonstrado que o representante de entidade atua como militante do CBA mais do que como delegado de sua entidade, a qual, por sua vez, exime-se freqüentemente de participação mais ativa, na medida em que se sente "representada" no CBA. Trata-se, portanto, de verificar como o representante atua na sua entidade, como consegue mobilizá-la na luta pela anistia, e, por outro lado, como a entidade corresponde à atuação de seu representante no CBA; ligada a essa questão, subsiste a da criação de "núcleos" do CBA nas entidades, e de como relacionar esses núcleos com o CBA.

Ainda na linha das formas organizativas que correspondam à nova realidade política em que vão atuar os movimentos de anistia, é necessário supor que se devam criar alguns órgãos de apoio mais permanentes e melhor estruturados dentro do CBA (Secretaria, Tesouraria, Arquivo etc.) ao lado de grupos de trabalho e comissões de caráter mais técnico, capazes de desenvolver tarefas mais ou menos permanentes ligadas aos aspectos jurídicos, parlamentares, sociais e políticos, implicados na viabilização dos eixos de luta (libertação dos presos, reintegração dos exilados, apuração das responsabilidades etc.) Em outras palavras, a continuidade da luta pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita talvez obrigue a transformar os movimentos de anistia em "entidades", no lugar do seu atual caráter de "campanhas".

Por fim, a intensificação dos movimentos reivindicatórios e o deslocamento do foco de repressão para os movimentos sindicais e sociais também obrigarão os movimentos de anistia a dedicar maior atenção a esses aspectos, na linha já por diversas vezes tentada da "popularização da luta", entendida esta não como a organização e a difusão popular da palavra de ordem da anistia mas como a justaposição da luta pela anistia com as lutas populares e sindicais. Nesse sentido, um grande esforço deve ser feito para integrar nos CBAs os representantes de sindicatos, de movimentos de trabalhadores e de movimentos populares, bem como para fazer os CBAs presentes em todas as lutas populares.

Todas essas questões, e outras aqui não registradas, devem merecer um cuidadoso exame das entidades que mantêm seus representantes no CBA, bem como dos grupos de trabalho em funcionamento. Um debate franco e aberto sobre esses problemas, a ser completado até a reunião ampliada de 11 de novembro, poderá apresentar sugestões profícuas a serem encaminhadas ao II Congresso Nacional de Anistia (Salvador, 15,16,17 e 18 de novembro de 1979).