Há 20 anos saía a Lei da Anistia e me vêm à memória aqueles dias, até porque a Fundação Perseu Abramo me pede um depoimento a respeito. Diga-se que conheci Perseu Abramo quando, ainda adolescente, eu visitava meu pai na redação do Estadão. Ele chefiava a seção do Exterior num tempo em que toda a primeira página era tomada pelo noticiário internacional. Notáveis jornalistas estavam lá, ocupando dignamente o espaço, e Perseu, sobrinho de Cláudio Abramo, mestre da profissão, era um deles. Morreu cedo demais, como o tio, quer dizer, sobrava-lhe muita coisa por fazer. De todo modo, tocado pela amizade sempre viva, murmurei para os meus botões: tentarei trazer de volta o passado para confrontá-lo com o presente.

Vinte anos atrás dirigia a redação da revista IstoÉ a qual defendia a idéia de uma anistia ampla, geral e irrestrita. O governo do general-presidente de plantão, João Batista Figueiredo, produziu uma lei de escancarada inspiração autoritária. Na IstoÉ, cujo Conselho de Redação presidia, Raymundo Faoro, recém-saído da presidência da OAB que resgatara com atuação renovadora e destemida, escrevia em editorial a respeito da Lei da Anistia: "Concebida fora do plano das exigências populares, nas quais a autocracia identifica, não sem razão, o perigo para a sua sobrevivência, revela-se, no nascedouro, velha, caduca e anacrônica".

A história, como se sabe, é escrita pelos vencedores e a ditadura, a despeito do proclamado propósito de retornar à democracia de forma "lenta, gradual, porém segura", resguardava os perseguidores enquanto fixava limitações para devolução dos direitos da cidadania aos perseguidos. Retiro do editorial de Faoro o seguinte trecho: "Para justificar-se, o projeto de anistia criou um fantasma. ( .. ) Com os relatos telegráficos do terrorismo italiano e do terrorismo alemão, fixou o contorno do terrorista, criatura odiosa que não mereceria os favores da Corte benevolente. Com o expediente, suprimiu-se a história do país, arredou-se e prescreveu-se a violência repressiva tantas vezes perpetrada contra a lei nas inúmeras prisões cometidas com o ritual do seqüestro. (…) Fantasma criado sem retoques, nele não se identifica o exilado, o banido, o perseguido fora das fronteiras".

Conclusão: A Lei da Anistia é "o exemplo solitário de um ato pacificador que castiga ao mesmo que convoca ao esquecimento".

Vencedores e Vencidos –
Está provado que a prepotência dos vencedores, inclusive ao suprimir a história de um país, não dura necessariamente para sempre. Não me refiro à história do Brasil no breve suspiro de nossas vidas. Aludo à história encarada de um ângulo mais fundo, menos efêmero. E está provado que certos fatos, especialmente marcantes, especialmente graves, apresentados de saída, e em geral aceitos, na versão do poder, acabam muitas vezes voltando à tona para questioná-la.

Por exemplo. A explosão das bombas do Riocentro continua ecoando como o big bang ainda pode ser ouvido no universo. Os resultados do inquérito promovido na época pelo Exército e impostos em toda a sua monstruosa absurdidade à nação assustada, hoje estão em xeque e são até ridicularizados pela imprensa que, 18 anos atrás, se calou. Felizmente, vítimas das bombas foram os próprios agentes do terror do Estado, verdadeiros terroristas à brasileira.

Me pergunto, contudo, quem foram os vencedores que escreveram a Lei da Anistia, e onde estão hoje. Que sobrou do regime militar estabelecido pelo golpe de 1964 e encerrado com as eleições indiretas de 1985? O rosto da ditadura era aquele dos generais-presidentes e dos paisanos que os serviam diretamente, sem exclusão de um punhado de juristas de aluguel. Estes, militares e civis, saíram da cena. Quem os convocou, no entanto, durante o governo de João Goulart, apavorado por um esboço de reivindicação social e devidamente amparado pela metrópole, digo, pelos Estados Unidos, permanece na ribalta. Se não as pessoas, ao menos o espírito que as movia, a visão de mundo, a ferocidade sem limites, a retórica grosseira. A idéia de que o Brasil é sua reserva de caça.

O país dos fins da década de 50, começos da década de 60, era outro e prometia muito. Chamavam-no "do futuro" com boas razões para tanto. E a oligarquia tremeu na base porque foi capaz de entender que soçobraria em uma época digna da contemporaneidade. Chamou, portanto, os gendarmes. Graças a eles, evitou o naufrágio e sobreviveu mais ou menos intacta, aos fardados que haviam cumprido a sua tarefa jogando o futuro no lixo. Os vencedores não foram os gendarmes contingentes, mas estes que encarnam um estilo e uma estrutura de poder originários da colonização portuguesa.

Vitória não, rendição – Volto ao passado. Como era simples, como era natural, estar de um lado ou do outro dentro de uma situação precipitada pela dicotomia sem escapatórias. Liberdade ou opressão, ditadura ou democracia. Pensava, in illo tempore, que os vencidos algum dia venceriam. E o Brasil seria finalmente alcançado pelos efeitos da Revolução Francesa. Nunca é tarde para emergir da Idade Média e para acabar com um poder que se mantém como se fosse por direito divino.

Agora verifico que muitos vencidos de 20 e mais anos atrás são vencedores, ou, pelo menos, são tidos e se consideram como tais, e nem por isso o Brasil mudou. Deu-se apenas que aderiram ao poder velho de guerra. Aprenderam a jogar conforme o figurino de sempre e até andam de braço dado com quem outrora os perseguia. Não são vencedores porque levaram à vitória as idéias que os inspiravam e sim porque se renderam às idéias que combatiam. Um deles, o mais proeminente, até recomenda: esqueçam o que eu disse.

Aqueles que urdiram a Lei da Anistia sabiam o que estavam fazendo. Creio mesmo que houvesse entre eles alguém disposto a um sorriso sardônico ao refletir sobre a natureza humana em geral e brasileira em particular. Ocorre-me imaginar que os magos da chamada abertura sabiam da existência de algo mais forte e duradouro do que os seus poderes temporários e que trabalhavam conscientemente a favor desta entidade superior, contando inclusive com a adesão, pronta ou vagarosa, de tantos opositores de então.

A Lei da Anistia foi o primeiro passo da abertura em seguida ao enterro do Ato Institucional nº 5. Passo decisivo, que apontava o rumo. Depois veio a reforma partidária, feita em proveito da candidatura de Tancredo Neves. Depois a frustração da campanha das Diretas-já, batida pela rejeição da emenda Dante de Oliveira. Perseguidores e perseguidos fizeram a Aliança Democrática, Sarney acabou regendo a dita transição. Ao terem vez, os civis organizaram a patética Constituinte de meio período. E assim por diante.

A Lei da Anistia é a profecia dos dias de hoje, a perfeita metáfora de uma situação que se daria somente 20 anos após.

Mino Carta é diretor de redação da revista Carta Capital e colaborador do Diário do Grande ABC.

 

*Publicado no jornal Diário do Grande ABC em 08/08/99