Se a máxima "um erro não justifica outro" parece verdade evidente numa ética entre cidadãos, truismo maior parecerá nas relações do cidadão com o poder público. O teor de gravidade de um crime, tanto quanto o grau de culpabilidade ou mesmo periculosidade do cidadão que o comete, jamais poderá justificar os abusos repressivos praticados pelos agentes do poder público, incumbidos de seu combate. Pois se de outra forma se entendesse, a tutela jurisdicional e policial do Estado estaria ética e legalmente descomprometida, na razão direta da gravidade do delito perpetrado, tanto do grau de culpa ou do perigo social representado por seu autor. Em outras palavras, quanto maior fosse o crime do cidadão, menos legalmente deveriam reprimi-lo os "agentes da ordem". Ora, isso não está consagrado nos mores, pelo menos dos povos que se pretendem civilizados. E se vale para aqueles crimes comuns que, entre nós, tiveram em contrapartida o abuso repressivo dos "Esquadrões da Morte", não há como deixar de valer para aqueles crimes políticos que tiveram em contrapartida o abuso repressivo (e igualmente criminoso) dos torturadores.

Em sua resposta genérica a uma específica, detalhada e documentada denúncia de tortura de que foi vítima, há dez anos, uma ex-presa política, os ministros militares, antes de mais nada, revelaram uma ambigüidade de entendimento, relativamente à figura do torturador. Se, de um lado, negaram haver qualquer aspecto delituoso na conduta daqueles "agentes da ordem", ao considerá-los "combatentes que se portaram com patriotismo, bravura e insuperável dignidade, de outro, invocaram, em defesa destes, o benefício da Anistia, o que, por si, lhes confere o status de criminosos políticos, pois seria descabido cogitar-se de anistia para quem não cometeu crime algum.

Os ministros militares, em sua nota, enfatizaram termos como "vencedores", "vencidos", "operações de guerra" e revanchismo, o que nos leva a refletir sobre a propriedade dos mesmos. Tivesse havido uma guerra civil no país, o que, pelo menos até o presente momento, ainda não ocorreu, talvez essa linguagem fosse apropriada. Mas, de fato, o que então se estabeleceu, longe de representar um confronto armado entre exércitos, milícias, grupos ou classes sociais definidas, ou regiões e Estados da Federação, tendo em vista a conquista do poder, significou tão somente a rebeldia dos que viram na contestação (armada ou não) a única forma de luta contra o regime militar, pelo que tiveram de se defrontar com os organismos estatais (e governamentais) encarregados da repressão política. Sendo assim, aquilo que se passou nos idos anos setenta não foi uma sublevação armada, pois a última ocorrida foi precisamente a de 31 de março de 1964 (o que levou Sobral Pinto a declarar recentemente: "Os militares é que fizeram revanche contra os civis, em 1964").

É evidente que uma parcela (e não a totalidade dos contestadores do regime militar adotou métodos de operação idênticos aos dos movimentos terroristas, especialmente em voga nas democracias ocidentais. Como também é óbvio que esses Estados democráticos (como a Itália, França, Alemanha etc.), conquanto intensamente vitimados por ações terroristas , têm procurado técnicas eficientes de repressão, sem com isso desvirtuarem-se a si mesmos, através do emprego generalizado de métodos violentadores da pessoa humana como é a tortura. Pois absurdo seria, numa Democracia, combater-se movimentos terroristas com operações repressivas que resultassem em terrorismo estatal.

Ante a eventual (apesar de velada) ameaça de retrocesso político, decorrente da postura retoricamente agressiva dos ministros militares, em reposta às denúncias de ex-presa política que apontou o local e os agentes de sua tortura, muitos, da classe política e mesmo da Imprensa, logo se dispuseram aos "panos quentes", num esforço de definir "anistia" com o termo "esquecimento", talvez aproveitando-se da semelhança etimológica dos vocábulos greco-romanos originários: Amnestia e Amnesia. Como o temor às armas jamais foi apanágio da reflexão consciente ou da precisão conceitual, permitimo-nos discordar, dizendo o óbvio: anistia não é esquecimento. Vernacularmente, é "ato pelo qual o poder público declara impuníveis, por motivo de utilidade social, todos quantos, até certo dia, perpetraram determinados delitos, em geral políticos, seja fazendo cessar as diligências persecutórias, seja tornando nulas e de nenhum efeito as condenações". (Dicionário Aurélio). Assim, não se deve confundir anistia com esquecimento geral ou "perda de memória", para o que existe o apropriado vocábulo "amnesia.".

As sociedades têm de preservar sua memória, sem medo de investigar, detalhadamente, o passado, mesmo quanto aos períodos mais sofridos e tenebrosos. A consciência lúcida do passado é a melhor proteção para o futuro. O povo judeu, por exemplo, uma das maiores vítimas da sanha nazista, quando faz questão de relembrar e divulgar as atrocidades sofridas, não é por masoquismo nem por "revanchismo" contra o Estado ou o povo alemão.

Por outro lado, em qualquer país civilizado, não há como negar ao cidadão, uma vez lesado em seus direitos fundamentais de pessoa humana, a possibilidade de exigir, via tutela jurisdicional do Estado, uma reparação civil pelos danos sofridos. (A propósito, a Alemanha Ocidental fez questão de indenizar, individualmente, as famílias vitimadas pelo nazismo.)

Finalmente, também discordamos daqueles que, no caso em questão, distinguindo os conceitos "atos de guerra" e "crime de guerra" colocam os agentes torturadores na categoria de "criminosos de guerra". Pois o torturador e/ou estuprador, antes de merecer o status de criminoso político ou mesmo "de guerra", não passa de um rasteiro e ignóbil criminoso comum.

 

*Publicado em O Estado de S. Paulo, 4/3/81