Antologia que reúne textos sobre a polêmica em torno do filme

O que é isso, companheiro?

e a versão que apresenta da luta contra o regime militar. Poucos filmes deram tanto o que falar como o último de Bruno Barreto,

O que é isso companheiro?

, baseado no livro homônimo de Fernando Gabeira. Artigos na grande imprensa, entrevistas, debates, o filme trouxe à tona a lembrança dos críticos anos 60, especialmente o episódio do seqüestro, em 1969, do embaixador americano Charles Elbrick, operação conjunta da Dissidência Comunista (depois MR-8) e da ALN.

Episódio de inflexão histórica, pois marcou a contra-ofensiva da esquerda armada contra o recrudescimento do regime militar, ao mesmo tempo em que o estimulou. Do seqüestro de Elbrick se desdobraram outros, garantindo que prisioneiros políticos de várias tendências de esquerda alcançassem o exílio, escapando à sanha torturadora do regime. A partir da mesma onda de seqüestros, a escalada repressiva do regime atingiu o paroxismo: prisões e torturas sem fim, assassinato em série de militantes, destroçamento da resistência mais frontal ao regime militar no Brasil daqueles anos.

O problema do filme reside em ter se baseado num livro que trata de fatos reais, em tudo dramáticos, com recursos ficcionais inerentes ao veículo, do que resultou, no caso, quando não um mau filme, uma história discutível. Distorcida, tendenciosa, quase simpatizante dos algozes. É o que se pode extrair dos debates e críticas de quem estudou o assunto ou participou do processo, muitas vezes protagonizando o seqüestro. Versões e ficções é livro que sintetiza o ânimo crítico que o filme despertou, reunindo artigos e entrevistas que, no mais das vezes, surgiram espontaneamente, no ritmo frenético dos debates. Mas é livro guiado por uma preocupação central que unifica: nem tanto a de restaurar a "verdade dos fatos", como se ela existisse em absoluto, mas pôr em cena versões menos comprometidas com a "idealização do passado". Nele escrevem ex-militantes, hoje jornalistas, editores, professores universitários, e diversos estudiosos da história brasileira contemporânea. O espectro dos autores é plural, mas o tom de conjunto é crítico e, no limite, repudia o filme enquanto construtor da memória da luta armada no Brasil.

Neste domínio crítico, não tenhamos ilusões: Versões e ficções procura explicitar as razões da luta armada, as circunstâncias do seqüestro, os personagens nele envolvidos, produzindo uma história em tudo diferente da narrada pelo filme. Os que não conhecem a história passarão a conhecê-la melhor: quem idealizou o seqüestro (Franklin Martins), o real papel de Gabeira (que o filme erroneamente transforma em protagonista número um), as circunstâncias em que o manifesto dos militares foi elaborado, exigindo a soltura de vários presos em troca do embaixador. A luta armada no Brasil fica devidamente contextualizada no cenário da Revolução cubana (1959), da independência argelina (1962), da guerra do Vietnã e do desencanto de vários setores da esquerda internacional com o modelo soviético.

Mas é menos a justeza dos fatos que move os autores do livro, embora neste domínio alguma veracidade possa ser estabelecida. Tão grave, afinal, quanto esposar a possibilidade de reconstituir fatos absolutos é o erro oposto: o de renunciar totalmente a eles, exilando-os no invisível território de possibilidades abstratas. A luta armada, seus dirigentes, a ação de seqüestro, tudo isto pode perfeitamente ser recontado de maneira mais justa e fiel do que a do filme de Barreto. A grande crítica do livro ao filme se move porém no campo de reconstrução da memória, sobretudo porque O que é isso companheiro? revela visível complacência com os torturadores e evidente má vontade com os guerrilheiros.

Neste sentido, basta dar o exemplo principal do filme que, por sinal, é objeto de vários artigos de livro. O personagem Jonas, codinome de Virgílio Gomes da Silva, operário, militante da ALN que comandou a operação. No filme aparece como autêntico boçal que não cessa de ameaçar de morte os companheiros de luta e por pouco não submete o embaixador a torturas. O livro resgata, porém, (porque não dizê-lo?) a verdadeira história de Jonas. História do militante que, depois de preso, enfrentou a pontapés os torturadores, resistiu às mais bárbaras torturas e morreu com o crânio esmagado, a cabeça lançada contra a parede até romper-se. Morreu duas vezes, escreveu Franklin Martins: na tortura, que levou seu corpo, e no filme, que bestializa sua alma.

O livro condena, assim, o seqüestro da história pelo filme. É como diz um provérbio africano citado no livro: "Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caça continuarão a glorificar o caçador." Versões e ficções enfrenta o filme e, de quebra, o livro de Gabeira que o inspirou. É a história dos leões de que fala o provérbio, resgatando a história da luta armada no Brasil, também ela seqüestrada.

Ronaldo Vainfas é Professor Titular do Departamento de História da UFF.

Publicado no Jornal do Brasil, 19/07/97.

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