Por Alexandre Gambirásio.

O jornalista que manteve a fé

Está sendo lançada nesta semana, num volume de 350 páginas, Um trabalhador da notícia, uma preciosa coletânea de colunas, artigos e textos esparsos do jornalista Perseu Abramo, uma das figuras importantes da resistência ao autoritarismo na São Paulo dos anos 70 e 80. Mas essa foi apenas a etapa mais conhecida e gloriosa da longa e admirável carreira profissional do paulista Perseu Abramo. Este jornalista de grande cultura, fino intelecto e feroz ironia atravessou bravamente um período histórico tumultuado, mantendo-se rigorosamente fiel a seus ideais socialistas.

Durante a época da ditadura, essa fidelidade apaixonada custou-lhe os bons empregos, as promoções e o renome nacional que certamente o seu talento traria, e não poucas vezes o colocou às portas da prisão. Com a volta da democracia, Perseu Abramo preferiu se empenhar profundamente na luta política, foi um dos fundadores do PT, o Partido dos Trabalhadores, e durante anos exerceu um papel influente nesse partido de esquerda. O que ajuda a explicar o título do livro. Perseu Abramo morreu em março de 1996, aos 66 anos. Organizada em vários blocos, que acompanharam cronologicamente as diferentes fases da acidentada carreira do jornalista, a coletânea oferece farta quantidade de escritos assinados por Perseu Abramo nos grandes jornais paulistas e na imprensa alternativa, no período que vai de 1960 até 1995. Serve de ilustração viva da própria evolução do jornalismo brasileiro. O jornalista tinha 31 anos em 1960, quando começou a brilhar na redação de O Estado de S. Paulo.

Perseu Abramo não tinha ares de grande estrela. Achava o jornalismo uma atividade tão nobre quanto a do pedreiro. Mas era ele próprio um intelectual formado pelas melhores escolas públicas de São Paulo, os tradicionais Ginásio e o Colégio do Estado e a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Nos anos 60, essas escolas representavam o passaporte para se juntar à elite intelectual da cidade. Fazia sentir-se muito forte ainda, nessa época, a influência da cultura francesa e, por conseguinte, a tradição do grande debate intelectual, como os que travava em Paris Jean-Paul Sartre. Nos anos 60, o jornalismo do Estadão era mesmo a atividade de uma elite intelectual, que se esmerava no texto bem escrito e até rebuscado, valorizava as alusões literárias e históricas e que, de modo geral, se considerava, no termo sartriano em moda, diretamente “engajada” no aperfeiçoamento político do país.

Nesse contexto devem ser lidas as belas crônicas de Perseu Abramo no terceiro capítulo da coletânea. Elas revelam estilo forte, por vezes hiperbólico, grande facilidade vocabular (e Perseu escrevia depressa), controle preciso dos conceitos. O bom humor faz parte da ocasião. E há os jogos de palavras que evocam o monólogo sem pontuação do Ulisses, de James Joyce, que também estava em moda. A pérola da coleção – e uma das chaves para entender Perseu Abramo – é a crônica “Não” (pág. 49).

O bom humor não está mais presente no capítulo seguinte, o mais longo e valioso, que reúne os escritos da fase mais conhecida da carreira de Perseu Abramo, quando editor de educação da Folha nos perigosos anos 70. A situação política se tornara sombria. Nestas 120 páginas predomina a inteligente luta de trincheira contra o autoritarismo: são colunas e artigos escritos debaixo das regras ambíguas da autocensura imposta pela ditadura militar. Aqui o leitor deve notar com cuidado a data de publicação de cada artigo, porque Perseu Abramo levava ao limite, segundo o momento político, a arte do risco calculado. Vale a pena ler “As aulas, amanhã” (pág. 123), em que ele desafia a proibição de noticiar uma epidemia de meningite em São Paulo, pelo truque de falar de outra coisa, o reinício do ano escolar. E é preciso ler “As bombas” (pág. 178).

Mas não está apenas no tom insolente a riqueza deste capítulo, porque em todos os artigos dedicados à educação floresce de novo a vocação do jornalista para o debate das grandes questões. Passo a passo, ele discute a profunda transformação por que passa a educação brasileira a partir dos anos 70, quando esta deixa de ser elitista para se tornar de massa, sacrificando, como não podia deixar de ser, pela escassez de recursos, a qualidade do ensino. Muitas interrogações feitas por Perseu Abramo ecoam até hoje como válidas e não resolvidas.

Nos anos 80, com a gradual instalação da reabertura democrática, Perseu Abramo dedica-se intensamente à política e ao PT. Os seus escritos, já fora da grande imprensa, mudam e ganham forte colorido partidário. Em alguns textos, o estilo vigoroso, mas sobrecarregado por tons proféticos, não deve fazer esquecer que Perseu Abramo cultivava a ironia e que, se exagerava na ênfase, poderia estar simplesmente se divertindo com a idéia de dar um susto no burguês.

Nessa direção, vale ler alguma das crônicas publicadas em 1988 na Folha da Tarde; Perseu Abramo tenta a comunicação direta com a camada popular, utilizando uma linguagem quase panfletária. Em uma coluna, sinistramente ele adverte as classes dominantes de que os trabalhadores podem estar prontos “para chutar o pau da barraca”. Nos textos dos capítulos finais da coletânea, alguns dos quais escritos para leitura interna do PT, Perseu Abramo mostra seus dotes de polemista, em impiedosas análises da situação brasileira. Particular interesse têm os seus trabalhos sobre o papel da mídia e dos jornalistas no Brasil. A crítica contra a grande imprensa é feroz. Assessor de imprensa na gestão da prefeita Erundina em São Paulo, em 1989, ele se vê obrigado a lidar com a comunicação de um partido radical que atinge finalmente o poder. E fracassa nisso, por razões que explica no interessantíssimo ensaio “Quem não se comunica…” (pág. 311).

Perseu Abramo mantém sua fé romântica nos ideais de um socialismo democrático incorrupto pelas práticas modernas. Uma vez no poder, aconselha ao PT, o governo petista “deve eliminar qualquer publicidade, propaganda, inauguração e, também, quaisquer dos símbolos e sinais que procurem materializar o marketing: o logotipo, o slogan, a marca, o desenho, a figura, a camiseta, o broche etc.”. Mas como imaginar a política brasileira sem a camiseta?


Alexandre Gambirasio é jornalista, foi secretário de redação da Folha nos anos 70.

Publicado na Folha de S. Paulo, 01/06/97.