Revolução tecnológica, Internet e socialismo
Por Susana Dias.
Laymert Garcia dos Santos, Maria Rita Kehl, Bernardo Kucinski e Walter Pinheiro. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003.
A fusão da biologia com a informática aumentou a capacidade de processamento e leitura das informações contidas nas moléculas de DNA e proteínas. Aberta essa possibilidade, os seres vivos transformam-se em pacotes de informação que podem ser utilizados para alterar os padrões de vida na terra ou, ainda, para reproduzir a própria vida. Em meio a um universo inesgotável de dados já mapeados, outra corrida tem início: a do garimpo de informações passíveis de serem traduzidas em mercadorias. Anuncia-se a possibilidade de transformação da nossa biodiversidade em riqueza, a partir da decodificação do genoma e proteoma para a produção de medicamentos, cosméticos etc. Nesse movimento, os seres vivos deixam de ser reconhecidos como tais – como as sementes transgênicas, por exemplo – e podem ser apropriados como inovação tecnológica. Sob a ótica da “virada cibernética”, proposta pelo sociólogo Laymert Garcia dos Santos, é a aliança entre tecnociência e capitalismo que tem proporcionado a transformação de plantas, animais e seres humanos em banco de dados, em matéria-prima, a ser processada por uma tecnologia que lhes agrega valor.
Preocupado com o mito persistente de que as novas tecnologias só trazem benefícios e bem-estar e com a propalada necessidade do Brasil entrar na corrida da tecnologização e da transformação do mundo em um banco de dados, Laymert apresentou o ensaio A informação após a virada cibernética no ciclo de seminários sobre “Socialismo e democracia”. O evento foi organizado pelo Instituto Cidadania, a Fundação Perseu Abramo e pela Secretaria de Formação Política do Partido dos Trabalhadores e tinha como objetivo o debate de questões que a contemporaneidade tem colocado para o movimento das esquerdas no Brasil. O livro Revolução tecnológica, Internet e socialismo apresenta o texto de Laymert, os comentários da psicanalista Maria Rita Kehl, do deputado do PT Walter Pinheiro e do jornalista Bernardo Kucinski e registros do instigante debate entre os participantes e o público que assistiu ao seminário.
Ao invés de discutir as perspectivas que a revolução tecnológica e a Internet abrem à luta pelo socialismo, Laymert colocou em discussão o campo de conflitos no qual estamos metidos desde que a “virada cibernética” deu fôlego ao capital e fragilizou os trabalhadores. O autor questiona a posição otimista diante dos avanços tecnológicos na medida em que as novas tecnologias não estão ao alcance da maioria de nós e nem mesmo cumpriram as promessas de criação de empregos e de estímulo à cidadania. Além disso, ele questiona a possibilidade e a necessidade da sociedade brasileira acompanhar o ritmo acelerado que a revolução tecnológica vem imprimindo ao desenvolvimento das nações.
Para compreender a sociedade atual, na ótica da “virada cibernética” de Laymert, é fundamental entender a aliança estabelecida entre o capital, a ciência e a tecnologia e perceber como essa aliança conferiu à tecnociência a função de motor de uma acumulação que transforma todo o mundo – matéria inerte, seres vivos e objetos técnicos – em dados, ao mesmo tempo em que consagra a inovação tecnológica como instrumento de supremacia econômica e política.
A percepção de que o mundo poderia ser transformado em um imenso banco de dados faz com que a idéia de “informação” possa ser aplicada a áreas do conhecimento, como a biologia, a física e a tecnologia – ao invés de restringir-se ao campo da comunicação. Por isso, Laymert acredita que os conceitos de informação e de tecnologias da informação, também precisam ser reconfigurados. A informação não pode mais ser entendida apenas como dado de realidade que permite a comunicação entre os seres humanos, e a tecnologia da informação não pode ser pensada apenas como a Internet ou a mídia em geral. A contemporaneidade exige que sejam extrapolados os parâmetros que geralmente definem esses conceitos abrangendo a noção tecnocientífica de informação.
Nesse sentido, Laymert coloca que as discussões sobre a democratização da informação e da Internet não podem mais se limitar à exaltação ou à crítica das novas mídias, pois extrapolam o campo de atuação desses meios e operam em diversos outros campos. Não podem também ficar restritas à idéia de que para promover a democratização da informação basta propiciar o seu acesso a uma maior parcela da população. Para o sociólogo, a questão não se situa apenas no acesso à informação, mas no processamento desta, que a transforma em um instrumento de conhecimento, de apropriação da vida e de geração de riqueza.
Enquanto a preocupação de grande parte do governo e de estudiosos parece situar-se no binômio inclusão-exclusão tecnológica, Laymert promove um deslocamento da discussão e defende a resistência à tecnociência. Resistência essa que passa pela luta em prol da manutenção da diversidade de culturas e de sociedades. “Em outras palavras, luta pela possibilidade de outros devires, diferentes daqueles concebidos pela tecnociência e pelo capital global”, diz o sociólogo.
A psicanalista Maria Rita Kehl, focalizou seu comentário na necessidade da esquerda brasileira colaborar com a construção de um lugar próprio para o Brasil na era da globalização. Um lugar que, em sua opinião, não poderá ser construído em oposição a outras realidades e nem a reboque do ideal de ingressarmos no “primeiro mundo”. Walter Pinheiro, deputado do PT, questionou a idéia de universalização da tecnologia e da informação associada apenas a democratização dos meios de comunicação e apontou os softwares livres como uma possibilidade real de transformação das noções de controle e propriedade ligados às novas tecnologias. Já o jornalista Bernardo Kucinski, criticou o que chamou de visão acadêmica “catastrófica” presente na exposição de Laymert e ressaltou o caráter libertário da revolução tecnológica comentando alguns exemplos, em especial, associados ao uso da Internet.
No cruzamento dos comentários tecidos no seminário, parece emergir um outro grande desafio que a esquerda brasileira terá que enfrentar com relação à revolução tecnológica: colocar em diálogo as diferentes visões sobre as novas tecnologias e suas implicações para o desenvolvimento da nação brasileira.