Patriotas e traidores: antiimperialismo, política e crítica social (resenha publicada no Estadão)
Por Haroldo Ceravolo Sereza.
No ano de 1900, Samuel Langhorne Clemens, mais conhecido como Mark Twain (1835-1910), volta aos Estados Unidos, depois de uma estada na Europa, como o grande escritor norte-americano, autor de As Aventuras de Tom Sawyer (1876), de O Príncipe e o Plebeu (1882) e de As Aventuras de Huckleberry Finn (1885). Volta também pronto para a fase de mais explícita militância – na qual critica abertamente a política externa de seu país e chega a ocupar a vice-presidência da Liga Antiimperialista, de 1901 a 1910, formada nos EUA após a guerra hispano-americana, de 1898.
O momento é crucial na história norte-americana. Num certo sentido, nascia o país ou, pelo menos, a parte dele a que se opõem hoje os pacifistas que, no dia 15, se reuniram em várias regiões do mundo em manifestações contrárias à guerra contra o Iraque. Depois de vencer a Espanha em 1898, os EUA concedem uma independência no mínimo problemática a Cuba e tomam do país europeu as colônias do Caribe, como Porto Rico, e do Pacífico, onde se destaca a questão das Filipinas. Na expressão de Twain, o país se igualava aos “ladrões de terra coroados” da Europa. “Li com todo o cuidado o Tratado de Paris e vi que nunca tivemos a intenção de libertar, mas de subjugar aquele povo. Fomos até lá para conquistar, não para salvar.”
Uma seleção de escritos políticos de Twain, especialmente os desse período, vai ganhar edição no Brasil. Eles integrarão o volume Patriotas e Traidores: Antiimperialismo, Política e Crítica Social (Fundação Perseu Abramo), organizado pela professora de Letras da Universidade de São Paulo Maria Sílvia Betti. O livro reúne de entrevistas concedidas por Twain até um texto de ficção, O Homem Que Corrompeu Hadleyburg, passando por artigos de jornal e panfletos do autor, e deve ser lançado na segunda quinzena de abril.
Outras guerras – As críticas do livro não se restringem aos Estados Unidos, embora as discussões acabem, normalmente, passando pelo país. Mas as políticas de belgas, alemães e ingleses, em episódios como a crise do Congo, a Guerra dos Boxers e a Guerra dos Bôeres, são tão ou mais duramente atacadas que as dos presidentes William McKinley (1897-1901) e Theodore Roosevelt (1901-1909).
“Twain não é um homem de esquerda, mas alguém que se engajou numa visão crítica do Estado”, diz Maria Sílvia. Twain, na verdade, nunca recusou a idéia de que os presidentes e os governos da virada do século estavam conspurcando os verdadeiros ideais norte-americanos. A invasão e a ocupação de territórios, tais como faziam os colonizadores europeus, eram, na sua opinião, uma traição aos pais fundadores. Queria que o país voltasse “a ser o que sempre fora”, ou seja, “uma potência mundial de verdade, e a maior delas pelo direito das únicas mãos limpas da cristandade, as únicas mãos inocentes da pilhagem sórdida das liberdades roubadas de povos indefesos.
“Esse desejo expresso faz parte do texto Defesa do General Funston, em que Twain busca comparar a trajetória de George Washington e a do militar responsável pela prisão de Emilio Aguinaldo, o líder rebelde filipino.
Funston voltou aos EUA como um herói, depois dessa prisão e de controlar a resistência filipina. Twain, como era de seu estilo, deu um título irônico ao texto – embora não tenha, desta vez, conseguido utilizar a ironia para defender um princípio, personificado por Washington, contra o que considerava uma vergonha moral o método usado por Funston para ludibriar Aguinaldo, a quem pedira comida para a tropa, atacando em seguida. Pelas normas militares, um soldado não poderia atacar quem lhe dá comida, como no episódio.
Numa Oração da Guerra, publicada de forma integral apenas depois de sua morte, em 1923, mas originalmente imaginada para a revista Harpers Bazaar, em 1905, Twain parece ainda menos contente com os rumos de seu tempo. “Na América – como em qualquer lugar – a liberdade de expressão é restrita aos mortos”, escreve. “Oh, Senhor, nosso Deus, ajudai-nos a rasgar a carne dos soldados do inimigo em postas sangrentas com nossas bombas; ajudai-nos a cobrir seus campos alegres com as formas pálidas de seus patriotas mortos; permiti-nos abafar o trovão dos canhões com os feridos retorcendo-se de dor; ajudai-nos a destruir seus lares humildes com um furacão de fogo; ajudai-nos a arrancar com dor inútil o coração de viúvas inocentes; ajudai-nos a deixá-las sem lar a vagar, com trapos, fome e sede, na companhia dos filhos pequenos, abandonadas as ruínas de sua terra desolada, enfrentando o calor do sol de verão e os ventos gelados do inverno”, defende.
Raízes – A resistência antiimperialista, como ele mesmo definiu, só atinge expressão política clara depois de 1900. Mas suas raízes já podem ser notadas em textos que ele, como repórter e comentarista, produziu para diversos jornais e revistas do século 19. Entre os blocos de textos do volume, um se dedica à China. E o primeiro dos textos de Twain, datado de maio de 1870, se intitula Vergonhosa Perseguição de um Garoto.
A crítica de Twain, informa Maria Sílvia numa pequena introdução (cada texto original é precedido de notas que contextualizam o momento de sua produção), é “desencadeada a partir da notícia do apedrejamento de um chinês por um garoto de São Francisco”, e tem como alvo um sentimento xenófobo contra os chineses nos Estados Unidos (que, em 1882, proibiria totalmente a entrada de chineses em seu território). A defesa do menino é, na verdade, uma crítica à cultura que o cercava: “Como ele iria saber que é errado apedrejar um chinês?”, pergunta, e exemplifica. Porque, sendo “um menino bem vestido, filho de pais inteligentes, e que freqüentava a escola dominical”, aprendera que, “quando um homem branco rouba ouro da caixa de cascalho de um garimpeiro (…), ele é expulso do garimpo, e que quando um chinês faz a mesma coisa é enforcado”. Depois de elencar uma série de casos semelhantes, Twain conclui: “Ou seja, o que poderia ser mais natural do que esse garoto de coração puro a caminho da igreja dizer para si mesmo, depois de tomar ciência de todos esses incentivos: Olha ali um chinês! Deus não vai me amar se eu não lhe jogar uma pedra. E por isso ele foi preso e atirado na cadeia.” Como diz Maria Sílvia, “mesmo nos escritos mais contundentes”, Twain utiliza elementos de paródia e de alegoria – o que torna suas críticas não apenas duras, mas também cômicas – e, talvez por isso, bastante duras.
Censura – Na opinião de Maria Sílvia, a vida política de Twain acabou sendo, “inequivocamente”, censurada pelo meio editorial e acadêmico norte-americano. “Apenas parte dos escritos antiimperialistas de Mark Twain foi publicada por ele em vida, embora seu ativismo nunca tenha sido interrompido, ao longo de sua prolífica carreira e das inúmeras entrevistas e declarações que deu”, diz ela.
A imagem de Twain no cânone literário norte-americano é de um autor de livros de ação que acabaram sendo muito associados à literatura regional para jovens. Uma imagem que, como teria demonstrado nos anos 1990 o pesquisador Jim Zwick (responsável pelo site que reúne o maior número de textos políticos de Twain, www.boondocksnet.com/twain/contested.html), deve muito ao primeiro biógrafo do escritor, Albert Bigelow Paine, que chegou a suprimir palavras de textos para adequá-los à sua imagem tradicional.
Para Maria Sílvia, os textos políticos de Twain sugerem que sua obra deve ser relida. “Há uma imagem de Twain que precisa sofrer reparos; até hoje, ele foi lido pela cultura oficial.”
Publicada no jornal O Estado de S.Paulo de 2/03/2003