A quarta mesa de debates do seminário “A experiência chilena do ponto de vista da esquerda brasileira”, realizada no final da tarde de sábado, 23 de setembro, teve como tema a via adotada pelo governo Allende para tentar implementar o socialismo no Chile.

Mediada por Artur Henrique, diretor da Fundação Perseu Abramo, o debate foi conduzido por Ana Prestes, secretária de Relações Internacionais do PCdoB, e Breno Altman, diretor do site Opera Mundi. O seminário, iniciado na noite de sexta-feira, foi promovido pela Fundação Perseu Abramo.

Assista à mesa com Ana e Breno aqui.

Os dois debatedores procuraram extrair lições daquele período da história chilena para os dias atuais. Ana, socióloga e cientista política, disse acreditar que a via imaginada por Allende acabou por prevalecer no seio da esquerda latino-americana, com a adoção de políticas institucionais de transformação econômica e social.

Breno, por sua vez, disse acreditar que nenhuma tentativa de transformação pela esquerda, mesmo que moderada, deixará de sofrer ataque contrarrevolucionário da direita. Para tanto, é preciso, entre outras medidas, construir sua própria força armada.

Chile, século 20: democracia consistente

Ana Prestes, cientista política, neta de Luís Carlos Prestes, lembrou que Salvador Allende acreditava na solidez da democracia chilena, amparado na realidade de um sistema político representativo que funcionava sem sobressaltos desde os anos 1930. Salvo em 1932, em que uma rebelião derruba o presidente Esteban Montero e instaura a República Socialista do Chile, que dura apenas 100 dias.

Ao longo daquele período, outra prática consolidada no Chile era a formação de frentes políticas. Foi por intermédio de uma delas, a Frente Nacional do Povo, formada nos anos 1950, que Allende concorreu à Presidência pela primeira vez.
“Os ventos frentistas vinham chegando com força a partir da Europa, com as experiências da Espanha e da França”, lembrou Ana.

“O Allende acreditava muito no voto como depósito da vontade popular”, disse ainda. Allende tinha a experiência de ter sido deputado por dois mandatos, senador por 25 anos e ministro da Saúde entre 1939 e 1942. “Isso tem relação forte com a experiência da via chilena rumo ao socialismo”, completou a cientista social.

Em 1958, Allende perdeu a eleição para presidente da República por apenas 30 mil votos. “Esta campanha ficou conhecida como uma das mais bonitas que já se viu, emocionante”, destacou Ana.

Lições do Chile, 1973: coalizão ou forças próprias?
Ana, Artur e Breno, acompanham comentário de Valter Pomar

Allende, luta armada e eleições

Nos anos 1970, era forte a influência da Revolução Cubana sobre as esquerdas latino-americanas. “Isso colocava na mesa outra opção de via para o socialismo”, comentou Ana.

Havia também a Guerra Fria. Ditaduras de direita estavam ao redor do Chile.

Em 1969, o Partido Socialista, ao qual pertencia Allende, e demais organizações constroem a Unidade Popular, frente que tenta também atrair setores da burguesia chilena. Há muitas disputas internas nos momentos que precedem a campanha do ano seguinte. “Em discurso”, destacou a palestrante, “Allende pede unidade e diz que não será candidato caso isso não aconteça”.

“Os líderes da Unidade Popular falavam muito numa democracia econômica, acreditavam que as transformações econômicas é que gerariam a maioria política. Pela história do Allende, ele acreditava que propostas econômicas fariam a transformação do Estado e que este serviria então ao povo. Assim, se imporia uma derrota aos setores oligárquicos”, lembrou. “Como se faz uma transformação tão profunda sem enfrentamentos?”, completou Ana.

“Ao fim e ao cabo, a visão do Allende prevaleceu na América Latina, em contraponto á experiência cubana como modelo”. Ana lembrou que mesmo Hugo Chávez, que protagonizou uma tentativa mal-sucedida de derrubada de regime na Venezuela, depois optou pelas vias institucionais.

Allende e o marxismo

Ana Prestes leu um trecho do primeiro discurso do presidente eleito Allende ao congresso chileno: “Marchamos sem guia, por um terreno desconhecido, tendo como bússola nossa fidelidade ao humanismo de todas as épocas, particularmente o humanismo marxista”.

A palestrante comentou: “Para ele, o marxismo era mais um instrumento de interpretação da história e da sociedade, e isso se encontra em várias falas dele, mas não era uma receita que poderia ser usada para a revolução”.

Para Ana, “de certa forma, o Allende inaugura na América Latina essa rejeição ao etapismo, à União Soviética”. “O Partido Socialista põe fogo no Allende para ele transformar as coisas logo. Isso faz com que ele se coloque de peito muito aberto”. disse a palestrante. Seguem-se as privatizações e a aceleração da reforma agrária, entre outras medidas tomadas no primeiro ano de mandato.

O Chile de Boric

Na opinião de Ana, o governo atual do Chile, de Gabriel Boric, tem menos uma iniciativa transformadora na área econômica e mais uma aposta na mudança e ampliação dos mecanismos de participação popular. “Talvez isso seja característica do nosso tempo: uma atenção maior à forma do que ao conteúdo”, pontuou ela.

“Há uma convergência que ressalta o valor da democracia quase como um valor em si mesmo, como se este fosse o maior objetivo. Em certo sentido, é quase o contrário do que defendia Allende, mais focado no conteúdo revolucionário das mudanças econômicas. Para ele, a democracia era compreendida como a formação de uma maioria de base popular, formada a partir da transformação da economia”.

Allende e os militares

“Fica sempre o questionamento daqueles que não estavam lá: como o governo Allende investiu tanto, e de peito aberto, em transformações tão absolutamente difíceis de ser implementadas, sem ter mais força, inclusive força militar? Estariam um pouco alheios à conjuntura, ao imperialismo inclusive?”, comentou Ana Prestes.

Derrota heroica

Breno Altman lembrou que a experiência chilena de Allende foi derrotada. “Uma derrota heroica, mas acachapante, com consequências brutais para a classe trabalhadora. E não apenas pela ação do inimigo, que faz o embate sem princípios”, disse. Para ele, os erros cometidos pelo governo Allende devem servir de alertas e lição.

“Não há comparação com o governo Allende e os demais governos dos chamados ciclos progressistas da América Latina. Nenhum dos demais se propôs a romper com a ordem, exceção do venezuelano. Allende não propunha ruptura revolucionária, e sim uma transição, mas com a mudança da ordem”.

Coalizão ou enfrentamento

Altman relembrou duas interpretações que a esquerda internacional produziu após a derrota e assassinato de Allende. A primeira, de Enrico Berlinguer, secretário do PC Italiano, que apontava como falhas da experiência chilena a falta de uma coalização ainda mais ampla e a excessiva rapidez com que operou mudanças econômicas e sociais.

A outra, condensada no livro “A Dialética de uma Derrota”, escrito por Carlos Altamirano, chileno que viveu a experiência de 1973 e militava no MIR (Movimento de Esquerda Revolucionária), partido que participou da Unidade Popular. Segundo Altman, o autor chileno condenou a “ilusão em relação à dinâmica dos processos de transformação e a ilusão em relação ao comportamento da burguesia e do imperialismo” como erros centrais de Allende.

Altman crê que a interpretação de Altamirano é a mais lúcida e verdadeira, à luz da experiência histórica. “Qualquer tentativa de mudança, por mais moderada que seja, vai confluir para a contrarrevolução, e a esquerda precisa se preparar, com mobilização popular, com organização, com educação popular e isso pressupõe também resolver a questão militar”, afirmou. “É preciso força, inclusive armada, senão você será derrotado”.

General de ray-ban

Altman contou que durante uma entrevista que fazia com o então presidente venezuelano Hugo Chávez, em 2002, um general de óculos escuros entrou no gabinete e saiu em seguida. O jornalista teria perguntado a Chavez se confiava naqueles militares que o rodeavam. “Chávez me disse: este é ‘patria ou muerte, é de confiança”. Dias depois, aquele mesmo general de ray-ban estava entre os militares que tentaram um golpe contra Chávez.

Depois do golpe que durou 48 horas, lembrou Altman, Chávez iniciou a preparação de “milícias populares armadas”, nas palavras do jornalista.

Para Altman, a estratégia de moderar o alcance das mudanças pretendidas e ampliar o arco de alianças, como sugerido pelo líder do PC Italiano, “embora tenha uma embalagem realista, não passa na prova da História”.

“Construir alianças é um elemento secundário. O elemento primordial é construir forças próprias, inclusive militar. Do contrário, cai. Construir força própria, esta é a maior lição do Chile de Allende”, concluiu o diretor da Opera Mundi.

Homenagem a Pablo Neruda

No dia em que se completaram 50 anos da morte do poeta chileno Pablo Neruda, militante político e defensor do governo Allende, o Seminário foi encerrado com uma homenagem prestada pelo poeta brasileiro Pedro Tierra, heterônimo de Hamilton Pereira, ex-presidente da Fundação Perseu Abramo.
Documentos recentemente revelados confirmaram que Neruda foi assassinado pelos golpistas que derrubaram Allende, por envenenamento.