Que forças armadas queremos e precisamos
A segunda parte do seminário sobre os 50 anos do golpe no Chile de Allende, na manhã de sábado, teve como tema “Golpismo e Questão Militar”. Os debates se concentraram nas semelhanças entre os golpismos militares no Chile e no Brasil, no passado e no momento atual.
Os professores Ana Amélia Penido, cientista social, e Manuel Domingos, historiador, ambos pesquisadores das questões militares internacionais, também procuraram apontar alternativas à autonomia e descolamento das forças armadas em relação ao poder político. A mesa de debates da manhã de sábado foi coordenada pela presidenta do Conselho da Fundação Perseu Abramo, a também professora Eleonora Menicucci.
O debate pode ser assistido aqui.
O primeiro a falar foi Manuel Domingos, doutor em História pela Universidade de Paris e professor da Universidade Federal Fluminense. Quando o golpe contra Allende foi consumado no Chile, Domingos estava preso, por fazer oposição à ditadura militar no Brasil.
Durante sua palestra, ele afirmou que os países latino-americanos, assim como quaisquer outros, jamais conseguirão construir políticas externas altivas e independentes enquanto suas forças armadas não estiverem, de fato, sob o comando da política.
Modernização das forças
O professor apontou que o processo de modernização e profissionalização das forçar armadas, tanto no Brasil quanto no Chile, iniciados em momentos diferentes, resultou em subordinação ideológica e programática dessas corporações aos países mais desenvolvidos. São os países centrais que fornecem as tecnologias e os armamentos e, principalmente, ensinam como e para quais fins os países compradores devem utilizar estas aquisições.
Perda de autonomia
“A modernização das forças armadas nos países arcaicos se dá em primeiro lugar com a completa perda de autonomia operacional do Estado. A força é dependente da produção de conhecimento que o Estado contratante não consegue controlar. Isso gera dependência extrema das potências que cederam as armas”.
No Chile, a modernização se dá na década de 1870, quando o país adquire tecnologia bélica da Prússia, que havia vencido a guerra contra a França. No Brasil, destacou o professor, esse processo se dá depois da Primeira Guerra Mundial, com a contratação das tecnologias da França, uma das vencedoras daquele conflito.
Estado refém
“É muita ilusão dos democratas latino-americanos acreditarem que podem ter uma política externa independente, altiva, se não há um braço armado do Estado autônomo”, crê o professor.
“Acho muita ilusão de quem pretendeu fazer política progressista, ou mesmo luta armada e revolução na América Latina, sem o conhecimento da máquina de guerra”.
Mudança
Domingos criticou a crença de que basta mudar o currículo das escolas de formação militar. O professor lembra que essa formação não se dá apenas em salas de aulas, mas na prática cotidiana, nos exercícios militares. “O comandante é que forma o militar”, disse. O professor sugere que o poder político passe a organizar e ter maior controle sobre o processo de recrutamento de jovens para o serviço militar.
Mitos fardados
A professora Maria Amélia, pesquisadora do Grupo de Defesa e Segurança Internacional, da Unesp (Universidade Estadual Paulista) apontou cinco linhas interpretativas para o fenômeno dos golpes militares na América Latina que são tão fortes e aceitos quanto são frágeis:
- que a herança cultural ibérica teria caráter mais violento, enquanto a tradição anglo-saxã seria mais democrática. Isso não explicaria o apoio concreto dos Estados Unidos, de herança anglo-saxã, à violência de golpes feitos fora de seu território
- nosso continente ainda seria influenciado pelo caudilhismo, época em que líderes militares sem ligação com o Estado e sem exércitos regulares comandavam movimentos de ruptura. “Se esquecem de dizer que os golpes no século 20 foram todos dados por exércitos profissionais e que eram parte da estrutura do Estado”
- países de extensa distribuição geográfica, como Brasll e Chile, onde o centro político fica longe dos demais territórios, exigiriam regimes de força. Isso não explicaria golpes em países como Paraguai e Bolívia, por exemplo
- militares que fazem cursos de formação em países que produzem e fornecem tecnologias bélicas favorecem o golpismo de direita. “Sim, mas isso sozinho não explica tudo”. A professora citou o exemplo do Peru, em que os militares que tomaram o poder a partir dos anos 1960 adotaram diversas políticas progressistas.
- há uma linha que defende que o autoritarismo é essencial para a aplicação de reformas econômicas em contexto de crises agudas, e que o investimento em áreas de defesa puxa a modernização. “Os países da América Latina que passaram por ditaduras militares não deixaram a condição de subdesenvolvimento. Seguimos sendo economias dependentes”, disse Ana Amélia.
Patriotismo militar
O efeito real da ideia de que militarismo promove progresso acaba por produzir outro efeito. “Existe o chamado patriotismo castrense, em que o militar olha para seus compatriotas civis como seres inferiores, porque pensam: ‘Eu sou o fator de desenvolvimento’”.
Problemas que se repetem
“Eu gostei muito do discurso do presidente Lula na ONU, quando ele defende a redução dos gastos militares em nome do combate às desigualdades”, disse a professora. Ana Amélia lembrou que o presidente Allende fez a mesma defesa em discurso na ONU, nos anos 1970.
No entanto, a professora criticou o governo Lula por ter reservado verbas de investimento do PAC para o setor militar, sem contrapartidas. “Eles têm autonomia orçamentária total, decidem onde e como vão investir. Disso eu não gostei”.
Nova versão para Ordem e Progresso
Para a professora, os militares insistem na ideia de que a segurança é essencial para o desenvolvimento. “É o discurso do medo. É uma releitura do lema Ordem e Progresso. Mas as ameaças que alardeia podem vir de dentro do seu próprio território, das pessoas que questionam a forma como as coisas estão funcionando”.
Militares como linha subsidiária dos EUA
“Os militares brasileiros precisam apenas cuidar das questões internas, o resto é com os Estados Unidos. Quando a guerra na Ucrânia eclodiu, nossos militares estavam cuidado de urnas eletrônicas”.
Opinião pública sobre os militares
Os militares são encarregados de diversas tarefas, como construir estradas, levar água e comida em momentos de crise, transportar urnas eletrônicas. Para a professora, esse contato com a população, associado a finalidades positivas, explica a boa avaliação que os militares têm junto à população. “A população não avalia se são boas para defender o país”.
Lealdade e respeito à lei
“Há múltiplas lealdades militares. Há a lealdade à instituição, ao Estado Nacional e há também a lealdade a uma liderança, uma pessoa. E a que predomina é a primeira: a lealdade a eles mesmos. Nós olhamos para eles como uma corporação. Eles olham para si como uma família”.
Allende ingênuo?
“Muito se fala que o Allende confiou demais no aparato militar. Eu não acredito nisso”, disse a professora. “Muito se discutiu se ele deveria ter feito uma limpa ou não nas forças armadas. Nem o Hugo Chavez fez na Venezuela, não é uma coisa simples”. A professora lembrou que Allende chegou a demitir 18 dos 21 oficiais superiores da Aeronáutica.
Proposta de mudança
“Como a gente lida com o binômio convivência-intransigência com os militares? Muito se tem falado em realizar uma Conferência Nacional de Defesa, que recoloque o debate sobre as forças armadas não só em torno dos militares, mas que envolva a sociedade num debate sobre que país queremos, qual a política de defesa que precisamos para ser este país e, então, que tipo de forças armadas precisamos para atingir esses objetivos”.