A abertura do seminário “A experiência chilena do ponto de vista da esquerda brasileira”, realizada na noite da última sexta-feira, 22 de setembro, foi marcada pela análise testemunhal de Ricardo de Azevedo, sociólogo que viveu e militou no Chile durante o governo de Salvador Allende e lá estava quando foi consumado o golpe, em 11 de setembro de 1973.

O seminário é promovido pela Fundação Perseu Abramo, para rememorar e debater os 50 anos do golpe no Chile. O encontro prossegue no sábado, dia 23. Os debates podem ser acompanhados no canal da Fundação no Youtube.

A noite de abertura teve também a participação de Ricardo Alemão, representante da Fundação Mauricio Grabois (PCdoB), de Alexandre Navarro, da Fundação João Mangabeira (PSB), de Daniel Angelini, da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco (Psol) e de Mônica Valente, secretária-executiva do Foro de São Paulo e dirigente do PT Nacional.

Mesa de abertura do Seminário

A mesa de debates foi coordenada pelo diretor de Cooperação Internacional da Fundação Perseu Abramo, Valter Pomar. O encerramento do encontro foi conduzido pelo presidente da Perseu, Paulo Okamotto, e o embaixador do Chile no Brasil, Sebastián Delpolo.

Ricardo de Azevedo, chamado pelas pessoas mais próximas de Ricardinho e assim tratado diferentes vezes durante o debate, viveu em Santiago de julho de 1972 até outubro do ano seguinte, quando foi sido preso durante um mês no Estádio Nacional, junto de outros militantes que se opuseram ao golpe. Azevedo foi também presidente da Fundação Perseu Abramo entre 2007 e 2008.

Ele fez um retrospecto da conjuntura histórica do governo Allende, que havia sido eleito em 1970 pela coalizão Unidade Popular.

Eleição

Allende foi eleito em sua quarta tentativa de chegar à Presidência do Chile, em 1970. O Chile possuía um sistema político sólido e partidos fortes. O sindicalismo, cuja maior representação era a CUT, possuía grande base social e reunia diversas categorias.

A coalizão que elegeu Allende, a Unidade Popular, era formada originalmente pelos partidos Comunista, Socialista e outras organizações de esquerda, como o MAPU (a sigla, Movimento de Ação Popular Unitária, também significa terra, na língua mapuche), a Esquerda Cristã e o Partido Radical.

No primeiro turno, Allende teve 34% dos votos, contra 31% do candidato do Partido Nacional, de direita, e 27% da Democracia Cristã, de centro-direita. À época, o segundo turno era decidido pelo Congresso chileno, espécie de colégio eleitoral. Nesse interim, extremistas de direita assassinaram o comandante das forças armadas, o que poderia convulsionar o país. No entanto, o atentado acabou por convencer a Democracia-Cristã a apoiar o nome de Allende e garantir a ratificação de sua vitória pelo Congresso.

Avanços

“A experiência da Unidade Popular não tem similar na América Latina. Não era populista, e procurava construir o socialismo pela via institucional, pelas eleições”, disse Azevedo.

Já no primeiro ano, tomou medidas radicais como desapropriar mil unidades rurais para a reforma agrária. 60% de toda a economia foi estatizada, transformados em APS (áreas de propriedade social), incluindo bancos e a exploração das jazidas de cobre, maior atividade econômica do país. No período, o desemprego caiu a 3% da população e a inflação estava sob controle.

Um ano depois, nas eleições municipais, a Unidade Popular cresceu e obteve 50% do total de votos no país.

Disputa cultural

A esquerda chilena incidiu na disputa de valores e de hegemonia cultural, apesar de mais frágil economicamente. Havia 64 jornais de direita no Chile, mas também 10 jornais de esquerda. “Esquerda mesmo, disputando”, lembra Azevedo. Nas artes, a esquerda chilena contava com nomes como Victor Jara, Pablo Neruda e Patrício Guzmán.

Começam os problemas

Em plena Guerra Fria e cercado de ditaduras de direita por toda a América do Sul, o Chile tinha ainda contra si a ação dos Estados Unidos. “Era acossado por inimigos de todos os lados”.

No plano interno, segundo Azevedo, o governo passou a enfrentar a oposição de uma pequena burguesia, como caminhoneiros e proprietários individuais de ônibus que faziam o transporte nas cidades. Esses setores alegavam temer a desapropriação de seus bens.

Golpe sob encomenda

Em 1973, a oposição imaginava obter maioria nas eleições para o Parlamento e assim retirar Allende pela via do impeachment. No entanto, a Unidade Popular teve 44% dos votos, o que frustrou os planos. “Aí começou o cerco”, afirmou Azevedo.

A direita passou a promover atentados a bomba em Santiago. Uma greve dos caminhoneiros promoveu o desabastecimento nas cidades e estimulou um mercado negro para os mais ricos. Subsidiados pela oposição, mineiros decretam greve contra o governo.

Do lado da esquerda, tem início as divisões. “Allende propõe negociação com a Democracia Cristã e com os militares, sem sucesso. Parte da base de sustentação prega a resistência, sem negociação”.

O “tancazo”

Logo depois, um tenente que comandava uma guarnição nos arredores de Santiago promove o cerco do Palacio de la Moneda com veículos blindados. O general Carlos Prats, leal a Allende, cerca os rebeldes e força a rendição.

“Era o momento de fazer uma limpa nas forças armadas, tirar os golpistas. Mas o Allende contemporizou”, segundo avaliou o sociólogo. Logo na sequência, Prats começa a enfrentar protestos de esposas de militares, que diariamente iam à posta de sua casa para protestar por aumento nos soldos de seus maridos. Prats renuncia. Seria assassinado pouco mais de um ano depois do golpe no Chile, em atentado executado em Buenos Aires.

O 11 de setembro

Corre a informação de que o presidente Allende iria anunciar, em 12 de setembro, a realização de um plebiscito sobre sua permanência no poder. Os militares decidem antecipar o violento golpe que estavam desenhando

Resistência

Havia organização popular em formato de juntas comunais, além de organização nos locais de trabalho. “Crescia a convicção entre nós de que haveria guerra civil. Havia uma ilusão de que haveria golpe, mas que as forças populares estavam fortes e as forças armadas iriam rachar”, disse Azevedo. “Eu permaneci no Chile por causa da perspectiva de guerra civil. Uma ideia que se mostrou ilusória”.

Dado o golpe, as forças armadas cercavam as fábricas e universidades e levavam os militantes, presos, até o Estádio Nacional. A militância de esquerda possuía poucos armamentos.

“Eu presenciei atiradores do alto de prédios disparando contra tropas do Exército, mas isso já eram atos de desespero, não havia coordenação”

“Havia condições de um governo de transição ao socialismo, ainda que por vias democráticas, num mundo dominado pela Guerra Fria e ainda cercado de ditaduras de direita, dar certo? Eu acho que não. Mas eu acho que se tivesse havido outra postura do governo naquela primeira tentativa de golpe, no tancazo, e ter feito uma limpa nas forças armadas, teria ganhado uma sobrevida. Mas sobrava ainda a crise econômica, que era forte”, analisou Azevedo.

Delpollo fala no encerramento, ao lado de Pomar e Okamotto

Crise fabricada

Ricardo Alemão, representante da Fundação Mauricio Grabois, destacou a falta de construção de controle e hegemonia junto às forças armadas no Chile de Allende, o que teria sido determinante para o golpe. Alemão lembrou ainda que parte considerável da crise econômica que se abateu sobre o país em 1973 foi causada pela ação da direita, que sabotou a distribuição de gêneros alimentícios, o que fez disparar a inflação.

Allende e o “consenso”

“Allende não poderia ter tido outra postura. Ele havia sido deputado duas vezes, senador por 25 anos e também ministro da Saúde. Uma pessoa dessa é institucionalista, difícil esperar dela uma ruptura. E havia o embargo invisível do grande irmão do Norte, os Estados Unidos, que manipulava a imprensa, as diplomacias dos países vizinhos, promovia locautes”, avaliou Alexandre Navarro, da Fundação João Mangabeira.

Paralelos com o Brasil do século 21

“A cada dia, a cada nova revelação sobre o que ocorreu no Chile, fica mais evidente a postura que teve o imperialismo no golpe que se impôs ao PT e ao Chile. Impressionante como se repete o posicionamento do empresariado, basta lembrar o pato da Fiesp. A direita não dorme, é capaz de qualquer coisa”, afirmou Daniel Angelini, da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco.

Revisionismo golpista

Na opinião de Mônica Valente, do Foro de São Paulo, os recentes debates ocorridos no Chile por ocasião dos 50 anos do golpe contra Allende demonstram que a direita tenta responsabilizar aquele presidente pela crise instaurada no país, e mostrar que o golpe foi uma forma de salvar a nação do caos. “É uma narrativa que tenta naturalizar o golpe”.

Mônica também destacou que em 1972, em discurso na ONU, Allende já chamava a atenção para a necessidade de integração latino-americana em torno do ideal de soberania.

Necessidade de politização

O presidente da Fundação Perseu Abramo, Paulo Okamotto, ao citar o filme “A Batalha do Chile” (Patrício Guzmán, 1975), afirmou ter se sentido impactado pelo grau de politização e organização demonstrado pelos chilenos no período que precedeu o golpe. “E mesmo assim foram derrotados. Mas para mim, assistir aquele filme me deixou uma grande lição: temos de politizar nossa população”.

O legado: democracia

“Eu não era nascido quando houve o golpe. Minha primeira memória sobre Allende foi numa visita a um cemitério em Viña del Mar, quando eu tinha sete, oito anos, e meu pai me apontou uma tumba sem nome e me disse que ali estava enterrado Salvador Allende. Por quase 20 anos, ele ficou enterrado num túmulo sem nome”, disse o embaixador chileno no Brasil, Sebastián Delpolo. “Allende foi inovador, ousado. Mas não conseguiu impor uma estratégia unificada para seu governo. Mas a semente que fica é a democracia. Para isso, precisamos formar maiorias”

Carta-testemunho

Valter Pomar, diretor da Fundação Perseu Abramo, encerrou a primeira parte do seminário com a leitura de um trecho do discurso proferido por Allende antes de sua morte: “Trabalhadores de minha Pátria, tenho fé no Chile e seu destino. Superarão outros homens este momento cinzento e amargo em que a traição pretende impor-se. Saibam que, antes do que se pensa, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor. Viva o Chile! Viva o povo! Viva os trabalhadores!”

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