Por Arthur Ituassu.

A crítica social de Mark Twain

A publicação de Patriotas e traidores: antiimperialismo, política e crítica social, de Mark Twain, não poderia ter vindo em melhor hora. A tolerância pública com relação às ações americanas pós-atentados de 11 de setembro está próxima do fim, se é que já não acabou. Os argumentos deixaram o terreno da razão e começam a patinar em discursos antiamericanos populistas recheados de marxismos vulgares. É o nosso velho problema do culto à personalidade. A demanda pelo discurso gera também o salvador.

Mark Twain foi um intelectual importante da vida pública americana na virada do século 19 para o século 20. Os historiadores mais ortodoxos que me perdoem, mas uma época, guardada as proporções, muito parecida com a atual. Talvez sua origem.

A segunda metade do século 19 foi a fase da consolidação da prosperidade americana. O país entra o século 20 como a economia número 1 do globo, derrapa nas confusões internacionais das quais participou e vai dar de cara com o colapso de 1929. Nas últimas décadas dos 1800, a expansão para o Oeste estava terminada. As instituições funcionavam novamente depois do impacto da Guerra Civil. As ferrovias cortavam o país de um lado ao outro. A rede ferroviária americana passou de 50 mil quilômetros construídos em 1860 para mais de 300 mil em 1900.

A imprensa era de massa. Era a época do húngaro Joseph Pulitzer e também de William Randolph Hearst, aquele do filme de Orson Welles: Cidadão Kane. Nomes que estavam sempre nos jornais de Pulitzer e Hearst eram os de Andrew Carnegie (Aço), William Rockfeller (petróleo), Gustavus Swift (Alimentos) e Solomon Guggenheim (cobre). Depois de terem sido escrachados pelos Europeus iluministas, os americanos tornavam popular no país um tipo de darwinismo social, uma adaptação da lei da sobrevivência do mais forte, do mais apto, da natureza para a sociedade.

As origens do imperialismo
Há um século, Mark Twain já escrevia contra as invasões americanas

Em 1896, Cuba estava sob domínio espanhol, que respondia com brutalidade a uma insurreição do povo local. O Exército espanhol, na intenção de cortar o suprimento da guerrilha, avançou sobre as vilas e levou a população para campos militares.

Para os jornais americanos era um prato feito. A notícia pegou e rapidamente a população estava discutindo o absurdo que a decadente selvageria européia fazia com os irmãos cubanos, americanos. Afinal, nós sabemos o que é isso, vivemos na própria pele. E onde está aquela famosa proclamação de Monroe: ‘América para os americanos’?

Em dezembro de 1897, o presidente (republicano) William McKinley discursava à nação: ‘Uma intervenção em termos humanitários não falhou em ter de mim as mais profundas considerações. ‘Em abril do ano seguinte, McKinley se dirigia ao Congresso pedindo a guerra. Um certo Roosevelt reuniu jovens de elite, contratou um alfaiate para confeccionar seu uniforme e liderou um regimento a cavalo que marchou pelas terras cubanas, onde os negros se tornaram temidos pelos espanhóis. Rossevelt, Ted – primo do futuro Franklin -, se tornaria presidente depois da morte de McKinley, assassinado por um anarquista em setembro de 1901.

Os Estados Unidos da América entravam assim no ambiente da política internacional. Entravam em guerra contra uma potência, um tanto decadente, é verdade, mas européia, e faziam isso não em função de alguma ameaça à segurança nacional, mas porque era dever dos americanos, artífices da liberdade, dar um basta à terrível dominação espanhola sobre o povo cubano. Os realistas não reclamaram. Era também uma boa oportunidade para limpar as redondezas da presença européia.

No entanto, para Mark Twain, representante típico do cristianismo liberal americano, o demônio havia tomado conta do país. Das 13 colônias ao Leste dos 1700, os EUA viravam o século 19 com um território de costa a costa, mais a presença em Cuba, Havaí e Filipinas, que também era domínio espanhol e foi parar nas mãos dos americanos depois da guerra.

Tudo isso estava presente na vida política da época e encharcava os jornais de notícias. A decisão sobre o que fazer das Filipinas foi, em 1899, um grande debate nacional nos EUA. O Congresso, por exemplo, ficou dividido sobre a proposta apresentada pelos antiimperialistas de garantir independência aos filipinos no futuro. A moção foi rejeitada em 6 de fevereiro daquele ano, pelo voto minerva do vice-presidente.

Mark Twain comentou a ação americana sobre as Filipinas: ‘Talvez fosse impossível não entrar – talvez fosse inevitável que tivéssemos de lutar contra os nativos daquelas ilhas -, mas não consigo entender, e nunca consegui chegar à origem de nosso antagonismo contra os nativos. Na minha opinião, devíamos agir como seus protetores – jamais oprimi-los sob nosso tacão.’

Segundo Twain, cabia aos americanos ‘livrá-los da tirania espanhola, permitir que organizassem seu próprio governo e esperar que ele estivesse pronto para ser avaliado. Não deveria ser um governo ajustado às nossas idéias, mas um governo que representasse os sentimentos da maioria dos filipinos, um governo de acordo com as idéias filipinas. Essa teria sido uma missão digna dos Estados Unidos. Mas agora…Ora, nos enfiamos numa confusão, num lamaçal de onde, a cada passo, torna-se imensamente mais difícil sair’. Cem anos depois, observando-se o que acontece no Iraque, é possível ver que Mark Twain estava certo.


Arthur Ituassu
jornalista e professor da PUC-Rio

Publicada no Jornal do Brasil, Caderno Idéias, 28/06/2003