Notícias de Lugar Nenhum
O título de Notícias de Lugar Nenhum – Ou Uma Época de Tranqüilidade remete, claramente, a Utopia, de Thomas More. Mas o lugar de que fala seu autor, William Morris, existe no espaço – a Inglaterra – e no tempo – início do século 22. O lugar nenhum fica por conta da comparação obrigatória, que percorre toda a obra, com o mesmo lugar, no industrioso, “progressista”, poluído e “selvagem” século 19. Tudo o que se projetava parecia um sonho, um sonho ainda muito longe, no tempo, da realidade.
Morris (1834-1896), que publicou este livro em 1890, foi um militante socialista, contemporâneo de Karl Marx e colega de liga de sua filha, Eleanor Marx. Sua obra é um romance utópico, algo um tanto distante do que se entende hoje por romance em português e mais próximo do conto fantástico dos cavaleiros medievais, como alertam Michael Löwy e Leandro Konder numa introdução ao livro. Está impregnada pela relação que Morris, um abastado súdito da rainha Vitória, e muita gente de seu tempo mantinham com a Idade Média e associada ao movimento romântico.
A história é a mais óbvia possível: um militante, depois de uma reunião partidária, dorme e acorda mais de 200 anos depois. Sim, o mundo mudara, muito mais do que ele seria capaz de imaginar: as coisas funcionam, as diferenças entre as classes sociais foram abolidas, as pessoas são felizes e – fantástico – vivem muito mais, ultrapassam com facilidade as barreiras dos cem anos, não por conta de avanços técnicos, mas justamente porque têm de trabalhar apenas na medida em que desejam, o que não significa pouco, mas, sim, de que não são obrigadas a fazer o que desgostam.
Há uma história, no sentido que deu nome a uma das ciências humanas, para esse novo mundo, mas não são todos os que se interessam por ela. Há alguns escritores, mas menos leitores. O visitante, que rapidamente tem de se dizer de uma terra distante e atrasada, luta até encontrar alguém que a conte, um senhor mais velho e interessado em estudos do século 19.
É curioso notar que o avanço social não é seguido de um avanço tecnológico. Enquanto as pessoas passeiam pela cidade e há filas de gente disputando trabalhos considerados pouco nobres – e não remunerados – para o visitante, pelo prazer de executar essas tarefas, os habitantes desse lugar nenhum ainda utilizam-se de carroças puxadas por animais e podem escolher, para seu dia-a-dia, objetos artesanais ou industriais.
Há dois riscos na leitura de Notícias de Lugar Nenhum: o de encará-lo como puro manifesto político e o de vê-lo apenas como literatura. As duas formas levariam a conclusões perigosas, porque caminhariam para julgar o livro ingênuo, inútil, descartável. Talvez seja melhor lê-lo como documento de uma época e de seus sonhos, sem se preocupar com suas fraquezas e sem o colocar numa estante específica. (H.C.S.)
Publicada no O Estado de S.Paulo de 20/07/02