Hip Hop – A Periferia Grita (resenha de Haroldo Ceravolo Sereza)
Por Haroldo Ceravolo Sereza.
Trabalho combina dados históricos com apuração do
fenômeno em várias regiões do País
A paranóia é uma das marcas que norteiam a vida dos que vivem no fio da navalha. A frase do jornalista Oswaldo Faustino, que faz parte do prefácio do livro Hip Hop – A Periferia Grita, pode muito bem resumir as dificuldades encontradas pelas jornalistas Janaina Rocha, repórter do Estado, Mirella Domenich e Patrícia Casseano na elaboração da obra, que deve ser lançada neste mês pela editora Fundação Perseu Abramo.
A chamada cultura hip hop, da qual o rap é a expressão musical e poética, é hoje o universo em que os jovens das periferias das grandes cidades crescem e apreendem o que está ocorrendo no mundo. Grafite, dança, música e uma maneira de apresentar essa música compõem essa cultura, às vezes chamada de cultura de rua. Mas não é nada fácil entendê-la, falar e escrever sobre ela, especialmente para quem está do lado de fora, como era o caso das jornalistas, quando preparavam o trabalho de conclusão de curso da faculdade, que acabou originando o livro. “No início, o hip hop não era um tema conhecido por nós”, avisam as autoras na introdução do livro. Para que isso mudasse, elas tiverem de passar pelo desafio de provar àqueles cuja história seria reportada que o trabalho era sério e que não se contentaria com os estereótipos repetidos pela mídia.
A reportagem combina pesquisa histórica sobre as origens dessa cultura, no mundo e no Brasil, com casos concretos da realidade das periferias de São Paulo. “O termo hip hop”, escrevem, “significa, numa tradução literal, movimentar os quadris (‘to hip’, em inglês) e saltar (‘to hop’)” e “foi criado pelo DJ Afrika Bambaataa, em 1968, para nomear os encontros dos dançarinos de break, DJs (disc-jóqueis) e MCs (mestres-de-cerimônia) nas festas de rua do bairro do Bronx, em Nova York”. Ao mesmo tempo, contam a história de De Menor, uma garota de 23 anos, moradora da zona leste de São Paulo, que tenta combinar suas baladas (festas) e companhias com as regras de conduta defendidas pela cultura em que foi formada.
Embora os conflitos entre marginais e policiais façam parte de 9 entre 10 letras de rap, essa é apenas uma característica externa do universo hip hop.
Longe de ser apologia ao crime, o rap é “é capaz de produzir uma leitura crítica da sociedade”, como defende o antropólogo Marco Aurélio Paz Tella, em trabalho acadêmico citado pelas repórteres. Seja visualmente, por meio do grafite, seja por meio das letras de música ou da dança (que remontam aos tiros da Guerra do Vietnã e também lembram os da guerra cotidiana da periferia), a cultura hip hop apreende signos externos e os reelabora. Um dos grupos organizados do movimento, por exemplo, chama-se Academia Brasileira de Rimas, em clara referência à Academia Brasileira de Letras.
Para produzir o livro-reportagem, as autoras realizaram inúmeras entrevistas, algumas óbvia e absolutamente necessárias, como é o caso dos rappers mais conhecidos do grande público (Mano Brown, dos Racionais MC’s, e MV Bill), outras com personagens mais “dos bastidores” – como o do “antropólogo do hip hop” Nino Brown, que guarda preciosidades da história do movimento.
Mas, mais que isso, fizeram um verdadeiro mergulho nesse mundo. Assim como é capaz de perceber a importância do movimento, sem se transformar numa peça de propaganda, Hip Hop – A Periferia Grita trata também de conflitos dentro dessa cultura, como o machismo denunciado pelas mulheres – “Não há credibilidade quando um integrante de um movimento libertário como o rap faz parte da máquina opressora em vez de denunciá-la”, afirma Chris, do grupo Apologia das Pretas Periféricas – e das divergências ideológicas entre o gangsta rap, que beira a defesa da marginalidade, e a maioria dos grupos, que, embora se mostrem compreensivos com os “manos” que “não correm pelo certo”, discursam para que fiquem longe das drogas e do crime.
Como se fosse um grande grafite, o livro realiza um painel do universo hip hop brasileiro. Se nem tudo o que é dessa cultura está ali – até porque ela “continua como uma cultura em transformação”; não há, por exemplo, menção à literatura hip hop do escritor Ferréz, autor de Capão Pecado, publicado em 2000, nem à revista Literatura Marginal – Caros Amigos, recém-lançada -, tudo o que está nesse painel ajuda quem está fora a entender um pouco mais as idéias e o contexto do hip hop. O que não é pouco, pois, hoje, não se pode pensar em políticas educacionais, de saúde e de segurança sem levar em conta essa cultura.
Como afirmou o rapper Cascão, do Trilha Sonora do Gueto, ao Jornal da Tarde, recentemente, na periferia “a informação está no rap, não nos jornais, que o rap é a palavra do lugar”. Além disso, a obra ajuda a compor uma literatura sobre o hip hop, ainda, num certo sentido, uma cultura pouco letrada – transmitida, essencialmente, por meio da música e dos passos de break.
Resenha publicada no jornal O Estado de São Paulo de 17/09/2001 – Caderno 2