Luta pela terra na literatura
Obra reúne autores brasileiros e portugueses em 500 anos de disputas entre patrões, índios peões e escravos

Sinhá Vitória abraça os filhos e aperta seus ouvidos para que eles não ouçam o tiro que vai tirar a vida da cadela Baleia, companheira na fuga da seca que a família faz pelo sertão nordestino. Fuga desesperada, que já transformou o papagaio de estimação em jantar. A morte de Baleia é mais um duro golpe na jornada sofrida dessa família, que nunca existiu e existe até hoje.

A dor dessa mãe e seus filhos, contada em Vidas Secas, de Graciliano Ramos, não aconteceu. Mas para os leitores brasileiros pode parecer mais real que os retirantes nordestinos de carne e osso anônimos que já se viram na mesma situação. Tomou forma, cor e sentimentos bastante reais na imaginação de quem leu o romance. Como se virasse História do Brasil.

A história do trabalho e dos conflitos pela terra no Brasil pode ser contada a partir da literatura produzida aqui. Organizado por Flávio Aguiar, escritor e professor de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo, Com Palmos Medida — Terra, Trabalho e Conflito na Literatura Brasileira reúne textos de vários autores brasileiros e portugueses.

Disputas entre colonizadores e índios, senhores de engenho e escravos e a vida do sertanejo são contadas por escritores como Graciliano Ramos, Padre Antônio Vieira, João Cabral de Melo Neto, Euclides da Cunha, Monteiro Lobato, Guimarães Rosa. Em livros desses e outros autores brasileiros estão presentes episódios como a Guerra de Canudos, o coronelismo, a monocultura e as primeiras manifestações que anunciavam o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Fica clara a estreita relação da literatura com a história. Embora mundos distintos, a primeira sem tanto compromisso com os fatos e documentos, uma bebe na fonte da outra. ‘‘Nos textos literários vamos em busca de aspectos subjetivos, tensões, sentimentos e dramas humanos que muitas vezes estão mais bem retratados que em um texto histórico’’, avalia Vitor Leonardi, historiador da Universidade de Brasília. É como expõe o ensaísta Antônio Cândido no prefácio de Com Palmos Medida: ‘‘É um mundo além do nosso mundo, que no entanto nos faz compreendê-lo melhor’’.

‘‘A literatura reflete os vários projetos de país que existiram. É possível perceber como os escritores viam aqueles acontecimentos, qual a estrutura mental de cada época’’, observa Flávio Aguiar, que lança seu livro na próxima terça-feira, em São Paulo. Assim, é possível observar como a visão sobre o mesmo tema mudou com o passar do tempo. Enquanto Padre Vieira, por exemplo, condenava os maus-tratos sofridos pelos escravos, apesar de aceitar a escravidão, no século XVIII eles apareciam como algo desagradável, mas natural.

O poder que a literatura tem de escancarar a realidade sempre foi percebida por governos ou movimentos ideológicos. Obras foram aplaudidas ou perseguidas por causa do cenário que pintaram. Na antologia de Aguiar, há textos escritos no período da ditadura militar. Alguns de autores perseguidos e exilados, como Ferreira Gullar.

A preocupação com o conteúdo de livros sempre existiu dos dois lados. Em suas memórias Tantos Anos (Siciliano), Raquel de Queiroz recorda o episódio que a fez romper com o Partido Comunista, na década de 30. Os originais de seu romance João Miguel foram analisados por membros do PC e Raquel convocada para uma reunião.

A escritora foi então acusada de cometer ‘‘infrações intelectuais’’ e escrever uma obra cheia de preconceitos contra a classe operária. Para publicar o livro, Raquel teria que fazer algumas modificações, como mudar o destino de alguns personagens. A moça rica se prostituiria, não a pobre camponesa. E um campesino que é assassinado na história, não morreria mais. Aliás, se tornaria dono de terras até o final do livro. Raquel pegou os originais e saiu da sala. E abandonou também o partido. Nos textos do livro, o leitor descobre com que olhos os grandes pensadores enxergavam a história do país no momento em que ela acontecia.

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