Brava Gente
Por Vasconcelo Quadros.
João Stédile, líder dos sem-terra, afirma que o movimento se transformou numa organização política e social de massas
SÃO PAULO – O principal dirigente dos sem-terra, João Pedro Stédile, revela que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) já deixou de ser um simples movimento social empenhado na luta pela reforma agrária: "Somos uma organização política e social de massas", admite Stédile, numa entrevista de 167 páginas ao geógrafo da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Bernardo Mançano Fernandes, transformada no livro Brava Gente, que será lançado no próximo dia 14 pela Fundação Perseu Abramo. O dirigente frisa, no entanto, que o MST não se transformará num partido popular agrário.
Mudanças – "No fundo queremos ser mais que um movimento", afirma Stédile, depois sugerir que as mudanças – de movimento para organização – podem se transformar num polêmico debate. Ele sustenta que, embora tenha encampado bandeiras que antes pertenciam apenas a partidos políticos, como a contestação ao modelo econômico, e de hoje estar praticamente estruturado nas áreas urbanas, o MST e seus militantes jamais deixarão o contato com a base social, formada por milhares de assentados e acampados. A grande batalha do MST está voltada para a derrubada do que seu dirigente definiu como três cercas: "a cerca do latifúndio, a da ignorância e a do capital", disse, apontando os grandes proprietários de terra e o governo como os dois inimigos dos sem-terra.
Mais de 1500 ocupações
O depoimento de Stédile mostra que um dos segredos da sobrevivência do MST é sua rígida disciplina interna e a aplicação de um conjunto de princípios socialistas que a esquerda abandonou por puro modismo. "Contra a maré continuamos defendendo os ideais socialistas", afirma, lembrando que uma grande parte da esquerda caiu numa armadilha ao se render aos teóricos que consideraram a queda do Muro de Berlim como o fim do socialismo. Desde sua gênese, em 1979, o MST vem construindo sua própria história, transformando-se numa organização nacional.
Sua força está na capacidade de organizar os sem-terra, ampliar sua militância e renovar as instâncias de decisão (direção e coordenação nacionais), na forte mística fundamentada em princípios de organização e na mobilização de sem-terra para as invasões de terra, que o movimento chama de ocupações. Até agora, segundo Stédile, o MST já realizou mais de 1.500 ocupações – só a Fazenda São Bento, no Pontal do Paranapanema, foi invadida 23 vezes, até ser desapropriada.
Contradição – "Somos de esquerda e vamos à missa", diz Stédile, sem encontrar contradição nisso. Ele lembra que na origem do MST estão as igrejas católica e luterana. Nada impede, no entanto, que as imagens de Jesus Cristo e de Che Guevara estejam no mesmo espaço ocupado pelos sem-terra. Também faz parte dos símbolos, que o movimento chama de mística, sua bandeira vermelha, hino e palavras de ordem próprios e as ferramentas de trabalho – como a foice e o facão. A lista de personagens históricas usadas pelo MST para educar sua militância é vasta, universal e toda ela vinculada à esquerda: vai de Karl Marx a Che Guevara no bloco internacional e do sociólogo e geógrafo Josué de Castro, autor do famoso livro Geografia da Fome, a Luiz Carlos Prestes no âmbito nacional. Entre os conflitos históricos ocorridos no país, os sem-terra aprendem a enxergar semelhança entre sua luta com revoltas que vão de Canudos às Ligas Camponesas.
O livro Brava Gente é uma síntese da história do MST, contada por Stédile desde a fundação do movimento, em 1979, no acampamento montado na Encruzilhada Natalino pelas 1.200 famílias expulsas da reserva dos índios kaigang, em Nonoai, até 1999, ano que marca uma forte guinada do movimento rumo à cidade e novas táticas – entre elas a de recrutar excluídos urbanos e invadir também terras produtivas.
Reportagem publicada no Jornal do Brasil, do dia 05/09/1999