A utopia capitalista sempre foi deixar a economia entregue às relações do mercado, blindando-a de qualquer ingerência da política, isto é, da influência direta das classes populares para atender as necessidades do conjunto da população. A partir da década de 1980, com a hegemonia meteórica do neoliberalismo, a utopia materializou-se na ampla aceitação pelos meios de comunicação e por aqueles governos nacionais que aderiram ao receituário recomendado pelo Consenso de Washington (1989). O jornal francês Le Monde, a propósito, chamou de pensée unique a nova ideologia que buscava tratar a economia como uma “questão técnica” para justificar uma blindagem às críticas, em oposição às diatribes políticas resultantes das divergências de cosmovisão que, para a cidadania em geral, significam a chance de constituir movimentos de pressão contra a cobiça da burguesia.

Os “jornalistas econômicos” sabem que essa forma de tratamento da economia, comparada a uma ciência exata cuja iluminação se alcançaria através de equações matemáticas, dissimula a verdade efetiva das coisas para disfarçar os reais conflitos em disputa. Se repetem o refrão é pelo respeito obsequioso aos editoriais dos veículos para os quais trabalham, em regra, partícipes da farsa para enganar bobos. Não é segredo o cruzamento de interesses dos “donos da opinião pública” com os interesses dos “donos da ciranda financeira” que, com a estratégia das altas taxas de juros usam fundos monetários de reserva, de bancos e empresas, para a obtenção de títulos públicos de curto prazo do banco central, o que retira excedentes da economia e leva à paralisa do desenvolvimento. É um excelente negócio para milionários e bilionários, com certeza, daí não quererem largar o osso.

A consolidação da fórmula Dinheiro / Mercadoria / Dinheiro (D-M-D), metamorfoseada num crescendo pelo cassino em Dinheiro / Dinheiro (D-D), ao conduzir o domínio do capital financeiro em escala global sobre as demais frações do capital (comercial e industrial) espraiou o seu poder, não apenas nas mídias tradicionais, mas na própria configuração do senso comum da sociedade contemporânea. Não à toa, o mantra tem guarida em 99% dos que comentam os temas econômicos, e se revelam ao cabo meros mercadores (sem ônus) de ilusões. Sempre reforçados por entrevistados de gravata que, com ares tecnicistas de quem está acima do bem e do mal, endossam mitologias.

O importante é que tudo transcorria, há pouco tempo atrás, sem alarde e sem que as preferências em jogo viessem à luz, com nitidez. O silêncio eclipsava, inclusive, o próprio nome das forças em ação. Palavras como finanças, rentismo, investidores, acionistas eram ditas a meia boca fechada para não despertar a consciência do povo que sofria as consequências do esconde-esconde. Foi mérito do presidente Lula da Silva abrir as cortinas do teatro para que todos pudessem ver os atores no palco.

Começa pela pseudo independência, no caso, do Banco Central (BC), obra servil do vice traíra do MDB na chapa de Dilma Rousseff, vítima do golpe misógino que serviu de ante-sala do terror à implementação da “Ponte para o futuro” (a rigor, para o passado), que transformou o Brasil no laboratório do neoliberalismo duro, de ataque frontal aos direitos trabalhistas e previdenciários dos trabalhadores. A precária Lei das Terceirizações e o trabalho análogo à escravidão são produtos do estelionato eleitoral do programa vencedor nas eleições de 2014. Mas, afinal, por que designar de independente um presidente do BC que é indicado pelos cachorros grandes do mercado?!

Nascia o mal, depois alimentado pela dupla Bolsonaro & Guedes. O primeiro chora (“com dor no coração”) por ter que devolver ao Estado as armas que ganhou de presente da Arábia Saudita; o genocida que não derramou uma lágrima pelos 700 mil óbitos da Covid-19. O segundo liquidou empresas públicas movido pelo dogmatismo privatista, mutilando a possibilidade de o Estado liderar políticas de combate às desigualdades abissais no país e aos freios à reindustrialização.

Ao denunciar a falta de boa vontade do BC em atender o interesse público da nação brasileira, ao invés das ambições particulares (antidemocráticas e antirrepublicanas), o mandatário eleito para um terceiro mandato no Palácio do Planalto colocou o dedo na ferida. Mostrou que a instituição oficial responsável pela política monetária obedece às demandas das finanças. Não dá a mínima para a soberania popular que, nas urnas, elegeu uma plataforma que vai em outra direção. O fato de a última reunião do Copom não haver baixado os estratosféricos juros da taxa Selic, os mais altos do planeta, é uma demonstração de desprezo aristocrático à vontade dos eleitores majoritários. Quem autorizou o BC a se comportar como se fosse um quarto poder da República? A Bolsa de Valores?

O escândalo, que prolonga as aspirações terroristas e golpistas do 8 de janeiro, no espaço da estrita institucionalidade, precisa ser classificado na condição do que é: uma afronta à democracia e à Constituição, um obstáculo torpe à posse e ao exercício com plenas prerrogativas legais do novo presidente. Que o Congresso Nacional tenha se curvado ao simulacro de independentização do BC, apequenando os poderes dos sujeitos políticos clássicos (o Executivo e o Parlamento, por via de representantes dos partidos políticos) é uma prova de autodesqualificação voluntária. Que continue na posição de minoridade e servidão à lógica financista sintomatiza a “Síndrome de Estocolmo”.

O programa ungido em 30 de outubro está sob risco, por causa da guerra de guerrilha travada por conspiradores acomodados de forma espúria em posições de prestígio em um lugar de mando, que não existiria sem a quebra da constitucionalidade, em 2016. O transformismo político, para que as mudanças acenadas pela vitória da Frente pela Esperança Brasil deixem tudo como está, conforme o conselho conservador do romance de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, Il Gattopardo, está em contradição com a coragem e a resiliência que venceu o atraso que derrotou o neoliberalismo e o neofascismo, em eleições recentes. Trata-se de um terceiro turno sem legitimidade, extemporâneo.

Age, no entanto, como uma pedagogia política libertadora ao permitir que a trama que se desenrola seja compreendida de modo transversal na sociedade, tirando o poderoso capital financeiro da toca em que exercia o poder sem mandato eletivo. Como na fábula, “o rei está nu”. O tranca-felicidade individual e coletiva, agora no bunker do BC, assumiu a vanguarda da extrema-direita na luta para barrar avanços do programa nacional-desenvolvimentista e a participação social na elaboração de políticas públicas. Sem a máscara de patriota de hospício do bolsonarismo, as finanças – sim, elas mesmas – erguem em nossos dias as barricadas a favor das hierarquias sociais de dominação e subordinação, herdeiras do colonialismo e do patriarcalismo. Recusam abandonar seu habitat natural, o “capitalismo selvagem”. Ao menos já conhecemos o inimigo na luta de classes das unânimes reuniões do Copom. Saber nominar o verdadeiro opressor é já um ato de emancipação.

Luiz Marques é docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul

Este é um artigo autoral. A opinião contida no texto é de seu autor e não representa necessariamente o posicionamento da Fundação Perseu Abramo.

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