Liderança criada no Complexo do Alemão, no Rio, Raull Santiago circula agora por outras periferias e as conecta com os chamados centros de poder. Em busca de soluções para as desigualdades nos territórios, Raull articula com grandes empresas a troca de inovações e riquezas das periferias para obter apoio a projetos de inclusão. Na campanha eleitoral do ano passado, tornou-se interlocutor importante de Lula para combater o extremismo de direita.

Forte presença nas redes sociais, o influenciador digital e fundador de coletivos como A Brecha ganhou mais notoriedade ainda no ano passado, quando, ao lado de Lula numa atividade de campanha no Rio, vestindo um boné com a sigla CPX, foi acusado nas redes bolsonaristas de ser traficante.

Isso foi, digamos, um tiro no pé também do próprio Bolsonaro, porque fez um novo movimento pró-Lula, ainda mais fortalecido nas favelas e periferias” avalia.

Nesta entrevista, Raull nos conta como transitar entre mundos diferentes e manter a crítica ao capitalismo ao mesmo tempo. Empreendedor bem sucedido, ele diz sonhar com o dia em que empreender não seja decisão movida unicamente pela dor.

Ele sonha também com a formação e criação de novos espaços de poder para lideranças vindas das periferias. “Se hoje alguém me perguntar ‘o que é que eu tenho que fazer para solucionar as crises que existem no Brasil?’, se o Lula me perguntasse isso agora, eu diria, cara, olha para a periferia, ouve a periferia’”.

Acompanhe:

Você já havia sido acusado falsamente assim em algum momento da sua vida? Como é que você lidou com isso?

Eu sou cria do Complexo do Alemão. Trabalho com comunicação como uma ferramenta central para mobilizar coisas, para disputar outras narrativas sobre a periferia, para contextualizar a realidade da favela numa ótica que não seja apenas a da criminalização, do racismo, dos estereótipos diversos. E, por isso, muitas vezes, ao longo desse trabalho, tendo os direitos humanos como uma das linhas centrais da atuação em níveis locais, muitas vezes denunciando violência policial e grupos de milícias, políticos A ou B já tiveram pequenos ataques, mas nunca aconteceu como essa escala.

E aí não só comigo, mas um grupo de ativistas e pessoas que ficaram hiper visíveis naquele momento, principalmente por conta da conexão direta com o presidente Lula.

Mas eu acho que isso tem uma linha do tempo, porque quando a gente olha para trás e para a realidade do Brasil, digamos, desde o golpe na presidenta Dilma, a gente já vem enfrentando essa estrutura, denunciando, questionando, discordando dessa prática que caminhava cada vez mais uma realidade de direita, de fascismo. A gente foi entrando no circuito, no radar dessas pessoas.

A gente foi na resistência a esse processo, ao Bolsonaro, pensando pela lógica dos direitos, pela lógica do enfrentamento ao racismo, pela lógica do respeito à diversidade. A gente sempre questionou muito as falas e os processos, a atitude, a violência daquele governo.

E o auge foi justamente esse período eleitoral, quando o Lula retornou muito forte pra fazer essa disputa sem as estruturas passadas de golpe que tentaram e que o fizeram ficar fora das eleições anteriores.

E o Lula foi ao Complexo do Alemão. O Complexo do Alemão é o auge da escalada. O Bolsonaro usou muito a ida do Lula ao Complexo do Alemão para atacar as periferias, dizendo que o Lula havia se encontrado com criminosos. E essas figuras criminosas que ele dizia eram o Renê Silva, a Camila Moradia, eu, vereadores da cidade do Rio de Janeiro, pessoas comuns, moradores e moradoras daquele território. Isso foi, digamos, um tiro no pé também do próprio Bolsonaro, porque fez um novo movimento pró-Lula, ainda mais fortalecido nas favelas e periferias.

O Lula ganhou e eu fui convocado para estar na posse no dia primeiro deste ano, junto com Rene Silva, que também é do Complexo do Alemão, com o Preto Zezé, que é presidente da CUFA, a própria Camila Moradia, um grupo de lideranças periféricas, estiveram lá nesse dia. E aí, nesse dia, a gente tirou uma foto com o Alexandre de Moraes. Essa foto viralizou com os dizeres iniciais de “Moraes tira foto com lideranças do PCC”. Essa foi a primeira grande viral desse ano que circulou pelo país como um todo. E pouco tempo depois a gente teve aquele ato absurdo, aquela situação caótica da invasão da Praça dos Três Poderes em Brasília. Eu estava no Complexo do Alemão, recebendo jovens de um projeto de São Paulo que trabalha com educação e tecnologia. E aí eu comecei a receber uma chuva de mensagens das pessoas dizendo que eu estava sendo apontado como um dos líderes do grupo no ato predatório e caótico terrorista em Brasília.

Usaram uma foto minha que eu fiz no dia 1º de janeiro, quando eu realmente estava em Brasília, uma foto que ficou muito famosa no aeroporto, onde eu estou de terno e gravata, com terno azul, com uma gravata vermelha, bem arrumado. E eles pegaram aquela foto e não só tiraram de contexto como foram preconceituosos, me colocaram como um segurança do Planalto que facilitou a entrada. Nada contra os seguranças, mas não podem nos ver bonitos e pensarem em nós de maneira diferente.

Você e os coletivos com os quais atua têm uma presença muito forte. E o trabalho de vocês inclui parcerias com empresas, com patrocínios. Nós, aqui do Reconexão, estamos inseridos numa realidade partidária, de movimentos, em que existe uma concepção de que patrocínio privado e militância política não combinam. No entanto, me parece cada vez mais difícil dialogar com a população periférica sem se aproximar de experiências como a sua e de outras entidades, como, por exemplo, a CUFA, hoje referência nos meios de comunicação quando o assunto é a periferia. O que a militância partidária pode aprender com vocês?

Essa é uma pergunta muito boa. Eu não diria que seria aprender, mas, sim, olhar para a própria linha do tempo dessas instituições e ver o que foi mudando ao longo do caminho para ser dado num processo como esse. Hoje, por exemplo, eu faço parte de vários coletivos, ajudei a fundar o Papo Reto no Alemão, o Perifa Connection, que é uma rede nacional. Os movimentos que têm sede no Complexo da Maré, o Favela Dez, que discute questões climáticas e ambientais com a periferia.

Em algum momento da vida, eu resolvi empreender. Aí criei uma agência, uma empresa, que tem a base social, que é fundada por pessoas totalmente negras, periféricas, que se chama Brecha. Mas isso já é um outro nível, um outro processo de negócio.

E também hoje trabalho principalmente na área social, mais conectado com grandes empresas, como a Ambev, onde eu faço parte do time de consultoria da Água AMA, e do Instituto Nu Bank, onde eu faço parte do fórum consultivo, entre outras redes.

Eu acho que esse processo que você traz, focado em se fortalecer, ele foi muito importante para formar jovens como eu. Porque eu venho dessa escola e ela me trouxe a consciência crítica e a formação de olhar para o meu território, entender as mazelas e os problemas existentes ali, entender que isso é uma estrutura construída pela realidade das desigualdades, das violências, como o racismo, de como o capitalismo se estrutura, se espalha pelo país.

Ao mesmo tempo, é uma geração que vai se conectando muito mais rápido do que as possibilidades que tinha no passado, principalmente a partir do acesso à internet. Então, as periferias viram redes nacionais. As referências periféricas começam a ganhar mais visibilidade e vozes novas vão surgindo. Como eu exemplifico, não só o meu caso, mas o próprio Rene Silva, que eu falei anteriormente, que é o fundador do jornal Voz das Comunidades, que é muito conhecido.

Até poucos anos atrás, quando a gente pensava em Complexo do Alemão, olhava para a TV, ouvia no rádio, lia no jornal, sempre estavam falando de lá, e sempre pela ótica da criminalização, das coisas ruins: “Não entra, não vá, não se conecte nesse lugar. Só tem coisas ruins”. Nós, ali dentro do território, vendo tanta potência, tanta coisa incrível. E a internet possibilitou essa primeira expansão de voz de nós mesmos, fazendo uma narrativa, inclusive questionando e disputando narrativas com esses espaços que no passado foram hegemônicos.

Eu uso muita comunicação para refletir sobre esse processo, porque a forma que a gente ocupou as redes sociais para falar de território, levando essa consciência crítica que se traz dos movimentos que nos formaram, nos possibilita uma conexão com essas várias outras realidades que tiveram de se conectar conosco.

Penso que o ponto central nessa reflexão é saber como funciona essa mesa de xadrez. Não é que as marcas sejam legais ou os CEO’s agora queiram pensar no seu dinheiro e fazer algo útil. Não é só sobre isso. Óbvio que tem pessoas boas em todos os espaços, mas quando se fala de empresas, essa não é a realidade.

Quando você pensa em ESG, que é a nova sigla do momento para pensar a sustentabilidade, governança e diversidade dentro das empresas, quer dizer que se a empresa é bem posicionada no campo ambiental, que gera pouco dano, trabalha de forma estratégica com carbono, tentando reduzir as suas emissões, pensa reflorestamento, etc, isso a faz subir no ranqueamento nacional e global de empresas. Ou seja, ela tem mais chance de ganhar mais dinheiro, de ser uma empresa diversa, ter mais pessoas negras, indígenas, LGBTQIA+, PCDs nas suas estruturas de liderança, em todos os espaços, e isso a leva a ascender nesse ranking. Ela ganha mais possibilidades de fazer mais negócios.

É estratégico ocupar estes espaços por quê? Esses recursos existem e normalmente ficam perdidos ou são mal pensados em sua utilização. E a gente, pessoas como nós, circulando, compartilhando os nossos saberes, tem a possibilidade de se conectar com essas empresas e pessoas com muito dinheiro, mas não para colocá-las num pedestal de endeusamento, “nossa mano, olha com quem eu vou sentar, é o CEO da empresa…” Não, a gente está sentando de igual, inclusive para colocar o dedo na ferida e dizer: “Cara, a gente sabe que a tua empresa está errando nisso e naquilo, e a gente tem uma solução local que precisa de recurso para ser executada e impactar a vida das pessoas, e esse recurso vocês têm, tá ligado? A gente pode ajudar vocês a solucionar este problema que vocês têm na estrutura da empresa e vocês ajudam a gente nos territórios a construir soluções para a desigualdade”.

Eu acho que são coisas inovadoras. Eu venho de uma geração e hoje os meus filhos são parte de uma outra geração muito mais antenada do que nós. Mas eu venho antes desse tempo. Por exemplo, eu passei por vários processos, como por exemplo “Abaixo a Rede Globo”. Alguns anos depois, eu fiz um trabalho na Rede Globo porque trabalhava em uma empresa fazendo documentários sobre periferias. E aí era muito também sobre os indivíduos na sociedade que são colocados como liderança. Mas quais são as realidades individuais dessas pessoas?

E aí, nesse período, quando eu tinha acabado de ter um filho, quando tinha desemprego, tinha ameaças por conta do ativismo de direitos humanos e falta de grana, trabalhar numa estrutura padrão acabou sendo a minha sobrevivência, para reenergizar, para ajudar dentro da minha casa, financeiramente falando, sabe? E aí poder passar por um segundo passo, me reestruturar e voltar com força total para aquilo que eu acredito, aquilo que me move.

E isso vale muito, quase como exemplo central que eu posso trazer para retomar, para o período da pandemia. A gente criou o Gabinete de Crise do Complexo do Alemão, assim que a pandemia virou uma verdade, uma regra, e o isolamento social começou a acontecer. Nesse período, em que imediatamente a fome virou uma dor de verdade, da realidade da nossa população, mostrando o quanto a desigualdade ainda era gritante, a gente botou o dedo na ferida, pressionando empresas e pessoas muito públicas, muito famosas e que têm muita grana a ajudarem o nosso lugar. E a gente naquele período, do primeiro ano até o segundo ano de pandemia, conseguiu ajudar em torno de 75 mil pessoas no Complexo do Alemão, mobilizando um recurso de aproximadamente 11 milhões de reais. E isso veio dessa estrutura, de entender que ela existe e lidar de forma crítica com ela, mas também pensar a partir dessas conexões: como é que a gente constrói soluções dentro do território?

Distribuímos tipo 5 mil cestas básicas mensais durante mais de um ano, movimentando esse recurso e não só fazendo um trabalho local, mas com o trabalho de excelência do território para fora, na prestação de contas e na produção local. De fazer isso chegar a quem precisa, no monitoramento de demandas.

Eu ousaria dizer que esse período, as relações que eu tenho, e que outras pessoas têm, é também um experimento. Não é nada martelado e carimbado. A gente vem de uma formação crítica e vai utilizando as redes sociais como estratégia de comunicação e narrativa para refletir territórios e mobilizações sobre esses espaços. Nessa expansão de voz, se conecta com todos os tipos de pessoas existentes, algumas para atacar, outras para fazer juntos, outras curiosas em saber como podem ajudar. E eu acho que o que a fizemos foi justamente nesse bolo identificar e mapear as pessoas e os negócios possíveis de alguma troca de ideias para aproximar essas pessoas da nossa realidade e conseguir executar, a curto prazo, demandas emergenciais. Para ter um respiro e conseguir, a partir disso, incidir na construção, em médio e longo prazo, de coisas que a gente acredita que, inclusive, muitas vezes vão contra a prática desses espaços. E utilizar em conjunto, no momento de necessidade, para depois partir para um novo ponto, para novas ações. Então, eu diria que são experimentos.

No caso do que eu tenho feito, tem sido muito positivo. Como a água AMA, é uma marca de água da Ambev que tem 100% do lucro revertido para apoiar iniciativas que ajudam a dar água potável para quem precisa no Brasil. E aí, por fazer parte dessa estrutura, eu também trabalho muito a pauta climática e ambiental, tive a possibilidade de rodar por vários lugares do país, conhecendo soluções e iniciativas que ajudam a pensar crise hídrica e acesso a água potável pelo país. Inclusive compartilhar e aprender coisas para que as pessoas dos nossos territórios pudessem evoluir ou inovar, ou copiar e colar literalmente iniciativas de outros parceiros, fazendo junto. Iniciativas que constroem soluções reais na ponta pra quem está em demanda. Então eu acho que é isso.

De uma maneira realista, o que você espera do novo governo?

Eu espero do novo governo um investimento maior da juventude na política, principalmente. Eu acho que o Lula foi a válvula de escape muito boa para esse enfrentamento ao bolsonarismo. Mas o bolsonarismo é uma realidade, a polaridade no Brasil é presente, é visível, é forte nesse momento. Eu acho que a gente tem de “estartar” novas lideranças no campo da esquerda, com essa reflexão crítica, e especialmente de bases periféricas, quilombolas, indígenas, favelados. Eu acho que o governo tem tentado fazer de forma assertiva esse processo de aproximar e fortalecer outras e novas lideranças vindas de bases populares para dentro da estrutura de tomada de decisão.

Mas precisa investir também dentro do território. Essa é uma das pautas que eu estou sempre trazendo, que a gente não pode trazer quem está na ponta sem fortalecer a ponta para que novas outras lideranças sigam surgindo. Então, acho que o governo deve estruturar e o que a gente tem de potente já existente hoje. Penso que fortalecer essas lideranças é uma ferramenta central e é dialogar com isso a partir das realidades populares.

Creio que está havendo um esforço do time presidencial em popularizar mais a forma como se comunica, principalmente na era em que a fake news é a grande arma contrária à realidade desse governo, descompromisso com a verdade e a notícia a qualquer custo, sem avaliação.

Olhando para os vários braços do que está acontecendo hoje, dentro da estrutura do governo, acho que existe um movimento que eu curto muito, que é esse, de tentar envolver mais o Brasil numa política que tenha conexão com o nosso olhar para o Brasil, esse pensamento mais de garantia de direitos, de inclusão das pessoas mais à esquerda. E dentro desses processos de participação, sobre a periferia, a realidade que a gente experimenta é muito ainda a desigualdade, o desemprego, a violência. A segurança pública é uma grande questão desse país.

Eu acho que a fome e o desemprego são a grande questão, mas fortalecer as lideranças no território, principalmente também no campo de investimento em educação e cultura popular. E também reflexões sobre o campo da segurança pública, que é o que diariamente vai ceifando de forma violenta a vida das pessoas que vêm de realidades que eu venho. Temos o aprendizado de dez anos, de estruturas construídas, de projetos estabelecidos dentro das favelas e periferias. E o que eu tento fazer é trazer os aprendizados para essa estrutura do governo, para que se construa esse interesse.

E a gente precisa incentivar que haja novamente a crença na democracia a ponto de participar não só através do voto, mas querer fazer parte. E eu falo isso todas as vezes nas favelas. Quando a galera me aborda sobre eu ser candidato, eu digo, “cara, eu não vou”. Mas se alguém quiser construir uma caminhada política real de base, eu apoio, bora junto. Temos quatro anos para fazer uma revolução e renovação política, para que haja uma nova juventude participante desse processo. Porque quando eu olho para a direita eu me assusto, porque esses fenômenos  já estão acontecendo. Uma galera sem compromisso, baseada em fake news, com milhões de seguidores, com uma fala fácil que viraliza, mas que não tem encaminhamentos ou compromissos práticos no fazer real no dia a dia da rotina das coisas. E a gente também tem plena capacidade de construir uma nova geração política de juventudes que ocupem esses espaços com a verdade, com respeito e trabalho.

Há uma aposta que você faz num trabalho que integre poder público e a iniciativa privada para construir novas realidades. O que você imagina para a regulação do trabalho?

É importante a gente refletir quando fala em poder público e iniciativa privada, porque esse avanço, ou essa conexão, tem que acontecer com todo cuidado. Porque quem é empresa não pensa de forma profunda, 100%, na descentralização de recursos, “toma tudo o que eu tenho e bora fazer uma coisa legal”. Pelo contrário. Quando a gente fala em privatização, tem que ir com os dois pés atrás e entender direitinho esse passo a passo.

As articulações que eu faço são muito em nível territorial. Quando a gente pensa amplamente numa privatização no país, normalmente as coisas não caminham positivamente no campo da população, pro povo e tal. A realidade fica desigual. É preciso tomar cuidado e ter equilíbrio nessa área, nessa caminhada, na superação. Mas eu penso que pelo campo do trabalho a gente viveu períodos caóticos. No último governo Bolsonaro, a perda de direitos, que já eram frágeis, foi um tiro muito doloroso, uma violência muito grande para a população, ainda mais na realidade de um país tão grande, com desigualdades que marcam não só realidades diversas dentro de cada estado, mas os próprios estados entre si. Então, pensar o campo do trabalho no Brasil é uma das coisas mais importantes, porque não tem emprego para todo mundo e empreender é romantizado.

Por exemplo, eu hoje, quando eu falo que eu sou empreendedor, eu gosto de dizer que eu sou um empreendedor da dor. Eu não acordei, falei “caralho, vou ser empreendedor”. Eu passei necessidade, passei perrengue. A ausência fez eu ter que me virar. E, em algum momento, essa sobrevivência virou um processo, se tornou algo real e você passa a empreender. Eu queria que as pessoas pudessem empreender sem ter que sentir dor, sem ter que sentir ausência, a violência e, na sobrevivência, ter que correr. E aí, “caramba, nossa, olha só, eu virei um empreendedor”. Não é sobre isso, porque não se destaca uma pessoa enquanto todo mundo está passando perrengue. E essa não é a realidade do Brasil. Então, precisamos debater e conversar mais sobre isso.

Acho que se fala pouco sobre a realidade do trabalho no Brasil. Uma das ferramentas centrais para a gente mergulhar de forma estratégica nesse mundo como um todo seria não só falar sobre trabalho, mas de educação financeira. Existe um desconhecimento de como se organizar financeiramente nas realidades periféricas. Não no campo de estruturar e organizar o seu dinheiro, mas pela ausência, né, do investimento real de quem tem dinheiro no Brasil nessas pessoas, na valorização do trabalho, na valorização do fazer, e na inversão da ótica de quem realmente tem o domínio do processo das coisas.

Porque uma mãe preta, periférica, com um salário mínimo, que consegue colocar o filho na faculdade, manter a sua casa, tá ligado, mãe solo, fazer isso tudo com o salário mínimo, ela dá aula sobre educação financeira. Mas, na realidade financeira coletiva, isso não recebe investimento, não é valorizado, pelo contrário, é subalterno. Essa pessoa sobrevive e faz isso no campo da sobrevivência, mas não escala nos espaços de trabalho. Muitas vezes acaba desempregada, como é o que a gente viu nos últimos quatro anos. Então, é um tema que precisa ser debatido ainda mais.

Uma grande questão do Brasil é pensar em trabalho e suas complexas diversidades. No último governo a facilitação para empresários mostrou o completo descaso com a população como um todo. Então, os cortes de salários, cortes de possibilidades futuras caso você perca o emprego, os direitos que facilmente os empresários aceitaram. O domínio sobre a tomada de decisão desses processos ficou bem marcado. Mas penso que também vale olhar para quem detém o capital hoje, quando grandes empresários questionam a taxação de impostos, dizendo que isso vai fortalecer os mais pobres. Isso que está muito explícito sobre a realidade racista do capitalismo, ainda na mão de alguns do capitalismo burguês. E aí a gente fala de capitalismo, que precisamos dele para sobreviver na realidade capitalista. Mas a estrutura do racismo está amplamente ligada ao capitalismo, principalmente a esse capitalismo branco, velho e hétero da realidade do Brasil, que traz falas tão absurdas e complexas como essa.

Ou como a gente vê, por exemplo, no caso recente da crise das Lojas Americanas, o nível de sujeira existente nessas estruturas. Então é importante discutir este tema em todas as esferas. Não sei se tenho uma resposta direta e profunda sobre algo tão complexo e que é central no coração do Brasil. Por isso que eu compartilho essa reflexão no sentido não de trazer uma resposta, mas de provocar. É importante falar sobre esse tema o tempo inteiro, em todos os espaços, com todas as pessoas, pra garantir direitos, para garantir possibilidade, para refletir que não tem emprego para todo mundo, que empreender não pode ser o romance sobre a trilha como ferramenta central, mas entender que, muitas vezes, no caso de quem vem da realidade periférica, a dor é a motivação e as pessoas empreendem para sobreviver, isso não é bonito. Mostra a característica de um país que não valoriza a grande massa trabalhadora do seu país. E um pouco disso entendi que é uma coisa pra pensar profundamente e debater mesmo.

Existe uma multiplicidade de periferias, as indígenas, quilombolas, periferias urbanas, como as ocupações nas regiões centrais. E existem as ruas como expressão tanto de festa como de disputa política. Como é que está esse diálogo entre as diferentes periferias e como é que elas podem se encontrar nas ruas?

Eu sempre falo em todos os espaços que a periferia, em suas múltiplas diversidades, é o que movimenta o Brasil. Essa periferia que é tão forte, que é tão potente e tão incrível para nós que compomos ela, mas tão violada e ignorada por essa estrutura de racismo no Brasil como um todo. Não existe espaço hoje que funcione no Brasil em que a periferia não esteja presente. Mas ainda, infelizmente, no campo do trabalho, isso é mais duro e menos valorizado. Então, por exemplo, eu falo que todos os dias as pessoas que vivem nesses territórios periféricos saem de casa antes do sol nascer e pegam duas horas de busão lotado pra abrirem as portas e ligarem os interruptores do funcionamento da sociedade. E também são essas as últimas a saírem, desligam as luzes, fecham as portas. Ônibus lotado e volta para sua casa, onde as vezes tem uma operação policial ou teve um confronto entre facções, não sei, e isso atingiu o transformador de energia elétrica e ela chega em casa cansada e não tem luz, sacou? Então, a periferia está em todos os lugares, mais ainda nesse campo da sobrevivência. O que a gente faz no nosso trabalho de comunicação é justamente esse levante, esse incentivo da periferia, da favela, se ver como uma grande potência.

O Complexo do Alemão, hoje, é o meu lugar de orgulho, principalmente por conta dos projetos sociais da favela que salvaram a minha vida, das iniciativas que a gente tem falado aqui. Mas eu lembro que, por exemplo, há muitos anos, antes de ter essa consciência crítica destacada, muitas vezes para eu conseguir um trabalho, para conseguir um curso, eu tinha que mentir o meu endereço, eu não falava que morava no Complexo do Alemão, porque dizer que vivia no Complexo do Alemão poderia fechar portas. Você reflete o quanto isso é violento, ter que negar a sua origem, o seu lugar, para circular numa sociedade que não te aceita. Isso é muito violento. Cada periferia é muito diferente e é de uma riqueza inimaginável, uma riqueza histórica, uma riqueza cultural. Inclusive, se eu pegar você agora para dar um rolé no Complexo do Alemão, a gente vai ver pessoas de origem indígena, quilombola, periféricas do Norte, do Nordeste, que migraram para o Sudeste. Isso mostra como cada periferia é a riqueza cultural, histórica e ancestral desse país.

E eu vejo, por exemplo, o Complexo do Alemão. Eu sempre falo para as pessoas que é como um grande coração, onde os becos são as artérias que bombeiam a vida dentro daquele espaço, e como, e aí me dói muito, como a sociedade olha para aquele lugar e consegue pensar sobre ele apenas sob a ótica de uma violência que é construída na ausência dos direitos, que é semeada de fora para dentro, nessas microviolências existentes e que em médio prazo seriam tão simples de solucionar. Acho que as periferias se encontram o tempo inteiro. Elas se conectam o tempo inteiro em diferentes fases, às vezes na sobrevivência do busão lotado, às vezes num projeto social, buscando uma possibilidade de fazer mais coisas pelo seu território, às vezes disputando uma única vaga, um espaço de trabalho que faz a gente brigar entre nós. Ela é o centro dos processos da existência. Meu discurso, a minha caminhada é para inverter essa lógica, não da gente dominando os processos, mas da periferia sendo vista como o poder que ela é na sociedade como um todo, no Brasil. Não só na América Latina, mas em outros lugares do mundo, tive a possibilidade de passar que essa cultura, a periferia, é o grande movimentador da existência da sociedade como ela é. Só que ainda muitas vezes explorada e não tendo seus direitos garantidos. Eu vejo a periferia como solução. Se hoje alguém me perguntar ‘o que é que eu tenho que fazer para solucionar as crises que existem no Brasil?’, se o Lula me perguntasse isso agora, eu diria, “cara, olha para a periferia, ouve a periferia”. Porque a periferia cria microssoluções nos seus territórios diante da realidade, das desigualdades. Na ausência, pela sobrevivência, a gente constrói solução. Então, se a gente aproxima e dá suporte para essas pessoas criarem solução sem precisar ter a ausência como regra central, isso conectado em grande escala, é o Brasil potência periférica.

Eu acho que a periferia, a favela, ela tem exemplos práticos que podem ser replicados e instalados, de se tornarem soluções não só pelos estados, cidades, mas para o país como um todo.

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