O trabalho livre
O atendimento das necessidades da vida exigiu, desde sempre, o trabalho do homem, e toda a admirável teoria de Marx liga a História da Humanidade às formas pelas quais este trabalho vem sendo realizado.
Não está muito longe o tempo em que o trabalho era basicamente executado por escravos: meus avós conviveram, até a adolescência, com escravos nas suas propriedades, e testemunharam confrontos violentos na lavoura de cana em Campos, durante a segunda metade dos anos 80 do século XIX, até o 13 de maio de 1888.
Naquele tempo, nos países onde a revolução industrial tinha avançado, já não havia mais escravidão e o trabalho era executado por homens teoricamente livres mas submetidos à lógica e às ordens do Capital, que os forçava a condições hoje impensáveis, com uma jornada de 12 horas ou mais em troca de salários ínfimos. O resultado eram condições de vida absolutamente desumanas, denunciadas por Marx e descritas nos romances de Charles Dickens.
Na segunda metade do século XIX, essas condições começaram a melhorar para os trabalhadores, em decorrência do amplo e forte movimento político de organização da classe, da grave ameaça de revolução socialista em 1848, do lançamento do Manifesto Comunista e de toda mobilização promovida pelas organizações marxistas e pelo próprio Marx.
O Capital compreendeu a necessidade de fazer concessões, melhorando a organização do trabalho, estabelecendo a jornada de 10 horas, racionalizando a utilização da mão-de-obra e mantendo a vigência da sua lógica de exploração. Entregava os anéis e conservava não só os dedos mas os lucros, que seguiam crescendo com a ampliação da escala de produção nas plantas industriais. Este processo evolutivo ocupou todo o fim do século e o início dos 1900.
Nas primeiras décadas do novo século surgiu a “ciência” da organização do trabalho, cujos expoentes foram os americanos Taylor e Ford e o francês Henri Fayol. Observações, medições, e racionalização científica das tarefas de produção permitiram um notável salto na produtividade do trabalho, e o movimento sindical articulado conseguiu, como grande conquista, a redução da jornada para oito horas de trabalho diário. Trabalho entretanto cada vez mais disciplinado, organizado e aprisionado dentro da lógica do Capital. A melhor expressão da vida do trabalhador desse tempo foi ironizada no clássico filme “Tempos Modernos”, de Chaplin, no início dos anos vinte.
O vendaval das duas grandes guerras e, entre elas, a grande crise da economia americana que se espalhou pelo mundo, juntamente com o surgimento do nazifascismo que chegou a dominar todo o continente europeu a oeste da Rússia, constituiu um conjunto histórico sinistro e calamitoso que perturbou, por três décadas, o desenvolvimento contínuo do capitalismo que parecia ter atingido um apogeu inabalável naquele início dos mil e novecentos.
Aquele apogeu foi realmente abalado mas o desenvolvimento capitalista reestruturou-se com tal força a partir do fim da guerra, entrando pela segunda metade do século, que todo o crescimento anterior pareceu meramente uma preparação para o triunfal e definitivo império mundial do Capital, com a derrocada soviética nas proximidades da última transposição dos séculos. Chegou-se a falar no fim da História. Houve nesse intervalo um período de notável melhoria das condições de vida da classe trabalhadora, o da social democracia européia e do estado de bem-estar, conseguido sob a pressão política da potência socialista de então, a União Soviética, que não alterou, todavia, a lógica do aprisionamento do trabalho pelo Capital, e não reduziu a duração da jornada de oito horas.
Com a crise deflagrada em 2007 e ainda não resolvida, o triunfalismo afrouxou-se, o Capital inquietou-se com o abalo da sua sustentação principal que é o sistema financeiro, mas não perdeu o domínio. E ficou claro que, além da sustentação financeira, o Capital criou uma força de alavancagem antes inimaginável, que foi o desenvolvimento tecnológico: esta força que multiplicou a produtividade do trabalho por um coeficiente ainda não avaliado de tão grande. Esta nova produtividade mostrou, pela primeira vez na História, o desenho daquilo que Marx previa como a era de emancipação das necessidades, a que o capitalismo, na sua imensa criatividade, conduziria.
A tecnologia, fruto da ciência, patrimônio da Humanidade, abriu pela primeira vez a oportunidade de emancipação do homem em relação à servidão que o prende à lógica do Capital no uso do seu tempo; abriu a viabilidade do alargamento do seu tempo livre, que será a maior riqueza humanística de toda a sua existência.
Tempo para se aperfeiçoar culturalmente, para meditar e amar, para amadurecer seu ser, sua visão do mundo, para dedicar-se à família, aos amigos e aos seus gostos, para cultivar sua religião ou para relaxar no seu lazer. Tempo para o seu viver, sua maior riqueza.
É a hora, pois, do trabalhador aproveitar a crise e clamar pela sua vida, lutar em todo o mundo (tem que ser uma luta mundial, não pode ser de um só país) pela redução da jornada de trabalho, para uma jornada de seis horas desde logo, inteiramente viável sob o ponto de vista econômico. Libertar duas horas por dia do seu tempo da prisão do Capital nas próximas décadas, e depois mais duas até o fim do século: será uma revolução emancipadora do ser humano tão importante quanto o fim da escravidão. Além da emancipação do ser do homem, a redução da jornada resolverá, pelo menos por cem anos, os gravíssimos problemas do desemprego, que constitui o maior flagelo da crise atual, e da destruição acelerada do planeta que ameaça as próximas gerações.
Os partidos de esquerda não conseguiram ainda, desde a derrocada da URSS, uma formulação convincente de projeto político para sua ação de longo prazo, a não ser a rejeição do liberalismo e a imprescindível retomada da presença do Estado no planejamento e na ação direta. A mais brilhante bandeira de mobilização para esses partidos, entretanto, está bem à frente da Humanidade, aberta pela própria força criativa do Capitalismo apontada por Marx: a redução substancial da jornada de trabalho e a emancipação do ser do homem pelo aumento do seu tempo livre.
Os sindicatos do mundo, influenciados pela propaganda do Capital, ainda não perceberam que a redução da jornada é muito mais importante e fecunda do que o objetivo tradicional do aumento dos salários. O caminho das reivindicações salariais é, aliás, o preferido pelo Capital, na medida em que visa o aumento do consumo, condição “sine qua” do aumento dos lucros. A redução da jornada, além de libertar, levará à procura maior de mão-de-obra para a implantação de dois turnos, e acabará acarretando a elevação dos salários.
Modestamente, penso que toda uma reformulação de estratégia é necessária e urgente para a esquerda mundial. A redução da jornada é a Revolução de hoje que emancipará o trabalhador nas próximas décadas e naturalmente levará ao Socialismo no próximo século.
*Roberto Saturnino Braga, ex-senador (PT/RJ), é autor de O curso das ideias (editado pela EFPA) e integrou o Conselho Curador da FPA.
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