1980: Uma guerra com um dos lados desarmado
" A partir daí é que surgiu essa idéia dos trabalhadores controlarem a chefia da empresa (…)"
Por Luís Inácio Lula da Silva
Houve um tempo de 1977 a 1978 em que eu fui tratado como a coqueluche de toda a esquerda brasileira, de todos os setores de conservadores, de todos os liberais etc. Eu cito sempre, como exemplo, o fato do Rui Mesquita ter ficado deslumbrado comigo, me chamar na casa dele e fazer aquela reportagem comigo para o “Sr. Vogue” e sair dizendo: – “Conheci Lula e passo a ter confiança no líder não comprometido ideologicamente”. Foi convite com Helmut Schmidt, foi convite com Adolfo Soares, alguns com o Frias etc. Eu gravei todos os programas de TV possíveis do Brasil, menos o Sílvio Santos. Na época, o pessoal me via como se eu fosse assim o nascimento de um novo Cristo no Brasil. A partir do momento que a gente fez a proposta do Partido dos Trabalhadores (PT), aí acabou. Passei a ser boicotado porque estava querendo tomar o lugar deles, estava querendo que o trabalhador brigasse com eles, ganhasse mais etc. Enquanto a gente estava na briga de 10%, tudo bem. Dá os 10% de aumento, repassa no custo do produto e tudo certo.
Este estágio de consciência veio para nós em 1980, para toda a diretoria do sindicato: de que só a luta econômica não bastava, era muito pouca briga. A proposta do PT já existia, mas ainda muito pequena. Esse nível de consciência política surgiu em 1980, é lógico, com as experiências de 1977, 1978,1979…Culminou em 1980. Por que?
Porque em 1980 a gente já entendeu que não adiantava levar a proposta de 10% de aumento. Nem 10%, nem 20% jamais vai resolver os problemas da classe trabalhadora. Isso resolve muito mais o problema do empresário que do próprio trabalhador. Então a gente faz uma campanha salarial calcada em cima de algumas reivindicações não-econômicas. Por exemplo: garantia de emprego. Entendíamos que o fato de um trabalhador permanecer no emprego durante cinco anos consecutivos vale mais… Permanecer no emprego durante um ano vale mais do que ele pagar 30% de aumento hoje e ser mandado embora amanhã. Então fizemos a campanha salarial em cima de garantia de emprego e redução da jornada de trabalho. Nós queríamos resolver dois problemas: primeiro o problema do descanso dos trabalhadores, segundo um problema do próprio país, ou seja, ampliar o mercado de trabalho, pois o Brasil precisa criar um milhão e oitocentos mil empregos por ano. Queríamos o controle da chefia por parte dos trabalhadores, porque o chefe é o homem de confiança da empresa, mas a palavra chefe sempre dá a idéia de que o cara é bonzinho e é o melhor dos trabalhadores que é escolhido para ser chefe. Nossa proposta era a seguinte: toda vez que um chefe tomar uma medida que a maioria do setor entender que é errada, em nível de punição ao trabalhador, os trabalhadores impõem ao chefe a mesma punição que ele impôs ao trabalhador. De seis em sei meses o sindicato e a empresa fariam uma pesquisa em cada setor de trabalho da empresa, se 60% dos trabalhadores entenderem que o chefe não está condizente com o cargo, os trabalhadores elegeriam um novo líder. Porque hoje na fábrica o chefe é o dono da verdade e essa reivindicação surgiu em uma discussão com patrão, numa mesa-redonda na “Friz Moldu Car”, onde tinha um chefe safado que ficava o dia todo passando a mão nas mulheres. Quando a trabalhadora ia reclamar, era mandada embora por desobediência a um superior. Essa mesa-redonda foi porque uma menina deu um tapa na cara do chefe, que havia cantado ela, passado a mão e tentado abusar da menina. Ela meteu a mão na cara dele e foi mandada embora por agressão ao superior.
A partir daí é que surgiu essa idéia dos trabalhadores controlarem a chefia da empresa. Muita gente não entende, porque não vive dentro de uma fábrica para saber o porquê dessa necessidade.
Outra reivindicação era a dos dirigentes sindicais poderem entrar na empresa a qualquer hora do dia e da noite, sem pedir licença para o patrão. Por que a gente chegou a essa conclusão? Porque o patrão tem todo o capital, tem a máquina, tem o prédio, o assoalho, a água, é tudo dele: o ser humano que está lá dentro. Esse não é dele, esse está vendendo sua força de trabalho. Quem é teórica e legalmente responsável por ele? É sua organização de classe, é o sindicato. Da mesma forma que o patrão coloca chefe 24 horas por dia pra tomar conta do seu lucro, que é a classe trabalhadora, nós queríamos, durante 24 horas por dia, por exemplo, ir até a Volkswagen saber as condições de trabalho a que estava sendo submetido o trabalhador. Eu acho que essa é uma reivindicação das mais justas, das mais sensatas. Mas isso é tido como radicalismo.
Tínhamos essa preocupação com as reivindicações não-econômicas, tanto isso é verdade que a gente levou a campanha nas portas das fábricas e o último item da campanha a ser abordado para os trabalhadores foi exatamente o percentual de aumento. O que até 79 era o primeiro, em 80 foi o último item a ser discutido. A gente estava se importando era com as garantias sindicais. Tinha se passado efetivamente às reivindicações político-sindicais.
As dificuldades eram enormes desde 1979. Já no final de 79 a gente discutia muito entre os companheiros de diretoria, e todo mundo entendia o seguinte: o Lula deixa de ajudar aos trabalhadores e passa a ser um empecilho para eles. Por quê? Porque todas as forças conservadoras do país e as que detêm o poder vão tentar arrebentar o Lula daqui pra frente. A arma que eles tentaram criar para eles passou a ser muito forte contra eles, então era necessário destruir essa arma. E a gente chegava à seguinte conclusão: de que enquanto eu estivesse à testa do Sindicato de São Bernardo, dentro desse regime, dificilmente eu conseguiria alguma coisa, pois a cada coisa que eles me dessem eu me fortaleceria muito mais. Eu ia me tornando um monstro que ia comer eles amanhã ou depois. E eles têm consciência disso, e é por isso que houve intervenção no sindicato. Eles têm consciência de que a arma era muito importante e era muito perigosa para eles. Então foi planejada a destruição da gente, e nós sabíamos que estava sendo planejada. Nós sabíamos que não podíamos voltar atrás, porque qual era a opção da diretoria? Ou cai defendendo aquilo que a categoria quer ou fica fazendo o jogo do governo. E entre estar bem com a categoria e estar mal com o governo, eu prefiro estar bem com a categoria e mal com o governo. Eu pego como exemplo o João Lins, de São Caetano do Sul, que foi um cara que acabou a greve e é um pobre coitado desmoralizado. Hoje eu sou muito mais respeitado junto à minha categoria, junto aos trabalhadores brasileiros do que muitos caras que não fizeram a greve e fizeram acordo. Eu tenho consciência disso e não é falta de modéstia, quem sabe seja até modéstia demais falar isso.
Tínhamos preparado um esquema, já em 1979, para mobilizar as mulheres. A gente começou a discutir. Não aquela discussão feminista: negócio de divisão de mulher e homem, aquele negócio que tem que ficar por baixo ou por cima. O negócio era o seguinte: o papel da mulher na sociedade. Era isso que a gente queria, não queria discutir problema sexual, negócio de lavar prato ou não lavar prato. O papel da mulher na sociedade. E isso a gente discutia: qual é a realidade brasileira? E a gente nunca tirou os pés do chão e acho que é por isso que a gente deu sorte. Qual é a realidade brasileira? Existe um tabu. Se já não existe na classe média, na classe trabalhadora existe, de que a mulher tem um papel a cumprir e o homem tem outro papel a cumprir: a mulher tem que casar e cuidar dos filhos e o homem tem que trabalhar pra sustentar a mulher e os filhos. Fugir disso é mentir, essa é a realidade brasileira. Embora eu não concorde com isso, outros não concordem… Vai ficar muito em nós. A realidade é essa: a mulher na cozinha e homem na fábrica. A gente tinha consciência disso, mas tínhamos consciência também de que por mais macho que seja o homem, nas decisões dele a mulher pesa de 50% a 60% e, em alguns casos, pesa mais do que a do próprio homem.
Ora, por que nós tínhamos consciência disso? Porque o homem recebe o envelope de pagamento no fim do mês e entrega para a mulher. Pra muito homem está cumprido o papel dele: – “Cumpri com a minha obrigação, trabalhei trinta dias e entreguei o envelope fechado pra mulher”. A obrigação da mulher começa exatamente aí, ela pega o envelope e vai abrir, só tem desconto, não tem dinheiro. É ela que tem que ir ao supermercado, ela que tem que ir na feira, ela tem que ir na padaria, ela tem que ir no açougue, é ela que vê o filho o dia inteiro pedindo doce, pedindo leite, pedindo carne, pedindo pão, pedindo o cacete a quatro. É ela que vê o moleque pedindo um brinquedo, é ela que vê o moleque falando em Papai Noel, é ela que tem que pagar a conta da luz, a conta da água… A mulher sofre muito mais do que o homem. E às vezes o cara chega em casa de noite, depois das 10 horas de trabalho, não tem carne pra comer e o cara reclama. Às vezes até, alguns homens, querem quebrar os pratos na cabeça da mulher.
A gente começou a mostrar, nas assembléias, a importância da mulher participar em igualdade de condições, dividir responsabilidades. Ou seja, tentamos mostrar para os homens de que era necessário de que a mulher fosse a sua aliada e não a sua adversária. E a mulher só iria ser aliada quando ela se sentisse participante do processo. E quem tinha obrigação de abrir esse espaço? Era o homem, que devido ao tabu, devido à nossa educação, à nossa formação, a mantinha trancafiada dentro de um quarto, dentro de uma cozinha ou coisa parecida. Isso deu muito resultado. Eu falo sem nenhuma demagogia, sem nenhuma afinidade com determinadas coisas que existem por aí, de que as mulheres tiveram um peso muito grande em tudo que fizemos. Principalmente a partir de 1979.
Estávamos presos já na época. Mas a alegria com que a gente viu as mulheres fazendo aquela passeata, assumindo aquela responsabilidade. Demonstrou uma maturidade familiar muito grande.
Às vezes o trabalhador é corajoso em casa e é cagão dentro da fábrica, é medroso, tem medo do chefe, tem medo do supervisor. Mas em casa, na mulher, ele quer descontar. Bichinho anda na rua pegando no braço da mulher até com peitinho estufado, querendo ser mais homem do que ele é na realidade.
Então a gente tentou colocar todo mundo no mesmo patamar, homem e mulher. Nós somos seres humanos: temos cabeça, orelhas, olhos, a diferença é apenas sexual. Mas em termos de capacidade de trabalho, de pensar, de imaginar, todo mundo é igual. Em termos de passar fome o estômago da mulher é o mesmo do homem. Em termos de ver um filho sofrer é a mesma coisa. Isso graças a Deus a gente conseguiu levar pra categoria como um todo.
Era normal você ver a assembléia repleta de mulher com criança, levando cesta pra fazer “pic-nic” depois da assembléia, no próprio Estádio da Vila Euclides.
Nessa campanha a gente se preparou realmente para uma guerra, porque sabíamos de que estava em jogo o fim de São Bernardo do Campo. A gente fez essa preparação e não foi fácil, porque foi um trabalho árduo recuperar a imagem perdida em 1979 pela jogada da FIESP e do governo, que queria mostrar que o acordo foi feito pelo nosso interesse de voltar ao sindicato ou coisa parecida. Mas a gente conseguiu recuperar, e conseguiu recuperar em dobro. Nós tínhamos consciência de que, para o governo, São Bernardo do Campo precisaria ser alijado do sindicalismo brasileiro e isso nos dava a consciência de que precisávamos levar a luta pra frente. Tínhamos consciência disso.
Nós fomos para as negociações e fomos convictos de que dificilmente sairia um acordo. Porque os patrões iriam radicalizar e nós também iríamos radicalizar. Fomos conscientes de que qualquer acordo só seria possível se nós, os trabalhadores, abríssemos as pernas. Mas nunca os patrões teriam bom senso com a gente.
Por isso que muita gente hoje cobra o fato de não termos voltado a trabalhar quando o tribunal decretou a greve ilegal.
Ora, se eu voltasse a trabalhar quando o Tribunal decretou ilegal a greve, eu estaria traindo a minha categoria, porque não deveria nem ter entrado na greve. O Tribunal deu menos do que os patrões tinham oferecido e a gente tinha recusado. Os patrões tinham oferecido, por exemplo, a estabilidade do trabalhador acidentado; a gente não tinha aceitado só isso, queria mais coisa. O patrão tinha oferecido 5% de acréscimo nas horas extras diárias e 100% nos feriados e domingos, nós tínhamos recusado isso. Os patrões tinham oferecido um piso de Cr$ 5.800,00, e o tribunal deu um piso de Cr$ 5.200,00. O Tribunal não deu nada pra nós, tirou.
Muita gente acha que deveríamos ter voltado a trabalhar. Ora, quem decretar uma greve com a consciência de que quando o Tribunal decretar a ilegalidade volta a trabalhar, nem decrete, seja honesto com os trabalhadores. A lei leva o Tribunal a decretar a greve ilegal. Então nós tínhamos consciência de que seríamos presos; não fomos presos inocentes. Nós tínhamos consciência porque a experiência do Olívio Dutra no Rio Grande do Sul estava muito marcante. E a experiência de 1979. O governo não podia intervir e largar a gente como largou em 1979. Ele tinha que intervir e tirar a gente da jogada. E era prender.
* Este texto é parte de uma entrevista de Lula, editada por Altino Dantas Jr., publicada no livro “Lula Sem Censura”, editora Vozes, Petrópolis/RJ, 1981, p.61-68.