A doutrina calvinista que exerceu enorme e decisiva influência na história e na economia do norte da Europa, acreditava na Graça de Deus, que afetava certas pessoas desde o nascimento, predestinando-as à Salvação. As demais, não marcadas por esta preferência divina, estavam condenadas a um comportamento de vida que, inevitavelmente, as levaria à perdição e ao castigo eterno. O livre-arbítrio, portanto, verdadeiramente não existia: cada um estava determinado, em todas as suas decisões e ações ao correr de toda a sua vida, que Deus previamente conhecia em detalhe.

É difícil compreender como tanta gente, milhões e milhões de seres humanos, e cristãos, que tinham fé no Pai bondoso, acreditaram durante tanto tempo na existência desse deus arbitrário, sádico e injusto. Hediondo mesmo.

Faço esta referência para dizer que eu creio, sim, numa certa Graça que afeta a vida de algumas pessoas abençoadas, sem que as demais, evidentemente, estejam excluídas da possibilidade de serem felizes, nesta vida ou em outra. Não sei se esta Graça a que me refiro vem de Deus ou da natureza, da Criação (minha religião é muito particular), mas eu creio nela firmemente, pela observação do caráter e da vida de algumas pessoas que chamo de abençoadas. E este tema me veio à mente na semana passada, quando escrevia um artigo sobre Oscar Niemeyer para o portal da Fundação Perseu Abramo.

Para os calvinistas ortodoxos, os sinais dessa Graça estavam na prosperidade dos escolhidos, na riqueza e no prestígio que adquiriam nas sociedades em que viviam. Sem poder aceitar esta caracterização calvinista, fiquei a pensar nas qualidades ou características que poderiam distinguir essas pessoas, cotejando-as com o que sei da vida de Niemeyer, um abençoado. E findei por elencar sete manifestações dessa felicidade que seria a bênção da Criação:

A primeira seria uma vida longa, propiciadora do tempo de amadurecimento e ultrapassagem de todas as fases de esforço e empenho da chamada vida útil, até atingir, pela jubilação de todo este trabalho necessário, o abençoado estágio da contemplação.

A segunda virtude seria uma disposição especial que faz dessas pessoas amigos sinceros do gênero humano, interessados sempre no destino dos seus semelhantes, solidários e inclinados à ajuda humanitária. Acho que, em sua maioria, talvez não totalidade, são pessoas de pensamento político situado na ampla vertente de esquerda, que não aceita como natural as diferenças sociais estruturais, as injustiças da sociedade dos homens, não de Deus, e tem o propósito de mudar o mundo.

São pessoas, ainda, muito sensíveis e afetivas, profundamente afetadas pela beleza do mundo e da vida neste mundo, e dotadas de certo dom e vocação para expressar de alguma forma este sentimento. Esta forma de expressão não é necessariamente literária ou artística, pode ser filosófica, científica, matemática.

A quarta característica seria, para mim, a de serem pessoas essencialmente otimistas, que guardam dentro de si uma certa dimensão de grandeza natural, e acreditam na evolução aperfeiçoadora da Humanidade, no seu reencontro com a Criação pela força da lei divina, isto é, pela razão, que lhe é atributo vindo da Criação; e também por um chamamento, um sentimento de alguma forma religioso, além da própria razão.

São ainda pessoas tendentes à ingenuidade, à doçura e à inocência, que não se deixam magoar em profundidade com as decepções que a realidade frequentemente impõe.

São pessoas que, como as crianças, gostam profundamente da vida, com uma alegria simples e espontânea, em cuja mente jamais ocorreria a idéia doentia de uma hesitação entre beber uma taça de veneno ou de champagne.

Obviamente, por tudo isso, a sétima característica dessas pessoas abençoadas é a de que são queridas no sentimento geral, o que não exclui serem desamadas e apequenadas na ótica realista dos que as vêem pelo prisma da infantilidade ou da irresponsabilidade.

Pensei tudo isso há uma semana ao evocar a figura de Oscar Niemeyer, que conheci quase aos oitenta anos, durante a minha campanha para a Prefeitura; que vi logo depois na campanha de Darcy Ribeiro para o governo do Estado e, já nos anos noventa, no Museu de Arte Contemporânea em Niterói com Jorge Roberto Silveira. Fui pensando e revendo seus olhos brilhantes na face benigna e radiosa, no corpo já quase imobilizado, a grandeza estampada na sua figura que, no dizer de Darcy, continuará a ser reverenciada quando todos nós, seus contemporâneos, tivermos sido esquecidos. Lembro-me de ter sentido então a velha admiração que tinha cultivado pelos antigos comunistas brasileiros que havia conhecido, Alcedo Coutinho, Jorge Amado, e de ter dito, naquele mesmo dia, que se houvesse Prêmio Nobel de Arquitetura estaríamos ali à frente de um premiado brasileiro.

Conheço várias pessoas, amigos e amigas, que mostram à vida essas características que chamo de abençoadas. Claro que não vou citar nomes para não omitir muitos. Mas posso mencionar os dois comunistas que citei acima, já mortos, e ainda me permitir a referência a outro especial, bem vivo, Leonardo Boff, que escreveu um belo artigo sobre Niemeyer. 

Bem, tudo isso é sentimento, não tem ciência nenhuma, é coisa de político velho e, por que não dizer, de velho e saudoso comunista da Juventude.

 *Roberto Saturnino Braga, ex-senador (PT/RJ), autor de O curso das ideias, editado pela EFPA e membro do Conselho Curador da FPA.