"Porque o setor saúde, inclusive o seu funcionalismo, havia se tornado assim tão engajado, tão politizado, tão empenhado nessa luta geral contra o autoritarismo e pelas liberdades democráticas?"

Por Zilah Abramo*

Entre as inúmeras entidades e movimentos sociais que se congregaram para dar apoio aos grevistas do ABC, nos anos 78/80, teve grande destaque a participação dos movimentos do setor da saúde. No chamado "Quarteirão de Saúde" (o quadrilátero compreendido entre a Avenida Doutor Arnaldo, a Avenida Rebouças e a Rua Theodoro Sampaio, indo até os fundos dos prédios que compõem o Hospital das Clínicas) foi intensa a movimentação: quilos e quilos de alimentos eram arrecadados, armazenados e distribuídos, campanhas para coleta de fundos eram incessantemente desenvolvidas e circulavam, a cada momento, as notícias mais recentes sobre o desenvolvimento das greves. Ali também se organizavam e se concentravam os grupos que iriam engrossar as inúmeras passeatas e atos públicos que se realizavam em São Bernardo ou em outros pontos da Grande São Paulo; ali se recrutavam os companheiros que iriam se incumbir das diversas tarefas realizadas na Assembléia Legislativa, onde estava sediado o Comitê de Apoio aos metalúrgicos. Entre essas tarefas, os plantões, que funcionavam 24 horas para recebimento de informações e divulgação dos eventos da greve e para contato com advogados, parlamentares e autoridades nos casos de prisões e outras formas de violência. Os profissionais de saúde, devido a uma grande experiência acumulada, eram preferencialmente destacados para os plantões noturnos.

O ambiente do Quarteirão era propício. Naquele espaço estão concentradas três escolas de nível superior: Medicina, Saúde Pública, Enfermagem; quatro unidades hospitalares: o Hospital das Clinicas, o Incor (Instituto do Coração), o Emílio Ribas e o Instituto da Criança; dois institutos científicos: o Adolpho Lutz e o Instituto de Medicina Tropical, além da sede da Secretaria Estadual de Saúde. Assim, era intenso no quarteirão o trânsito de estudantes, professores, técnicos e funcionários de todos os níveis e especialidades que se uniam no esforço comum de dar respaldo para o movimento dos metalúrgicos. Os pontos de reunião eram variados: as dependências do Caoc (Centro Acadêmico Oswaldo Cruz, no subsolo da Faculdade de Medicina), o restaurante da Faculdade de Saúde Pública, onde almoçavam diariamente vários grupos de funcionários, alunos e professores; a chamada "Praça da Tristeza", diante do prédio da Administração do Hospital das Clínicas, lugar de passagem constante de funcionários e usuários dos serviços, ideal, portanto, para mini-assembléias e panfletagens.

O sistema de comunicação era rápido e eficiente: a cada acontecimento, a cada movimento das forças de repressão, imediatamente os mimeógrafos ou as xerox do Caoc eram acionadas para produzir ou reproduzir os panfletos que informavam todo o quarteirão, ou as simples filipetas que eram utilizadas para as convocações para as passeatas, os atos públicos, ou para divulgar a agenda das tarefas diárias. E para a distribuição desse material havia diversos grupos a postos. Essa eficiência e essa rapidez eram de dar inveja aos recursos sofisticados da comunicação moderna.

Como se vê, no quarteirão de Saúde havia os recursos e as oportunidades para sustentar uma grande mobilização. Mas, como dizem os criminologistas, isso não seria o suficiente. O fator essencial é sempre a motivação. Que motivação seria essa? Porque o setor saúde, inclusive o seu funcionalismo, havia se tornado assim tão engajado, tão politizado, tão empenhado nessa luta geral contra o autoritarismo e pelas liberdades democráticas? Por que, na grande greve geral de 79, em que o movimento dos funcionários enfrentou durante dois meses o governo Maluf, o setor saúde, pela primeira vez, teve papel tão destacado que chegou a ombrear-se com as categorias do magistério na capacidade de mobilização e na disposição para a luta? Por que, na campanha da anistia, várias associações de profissionais de saúde fizeram representar-se no CBA/SP, destacando-se o magnífico trabalho do Núcleo de Profissionais de Saúde, que, além das atividades de assistência a presos e vítimas da violência e da tortura, encarregou-se também de realizar um importante estudo com o título "Estudo sobre a tortura no Brasil"?

A resposta é simples: nos anos 75/79 (segunda gestão do secretário Walter Leser) tinha havido uma grande renovação do quadro de funcionários da Secretaria Estadual de Sáude. A clarividência de Leser fez com que ele, desde o início, percebesse que o déficit de recursos humanos da Secretaria era o principal obstáculo para que as diretrizes inovadoras da reforma administrativa, aprovada em 1968, não tivessem sido devidamente implementadas. E assim foi estabelecida, como prioridade número um da sua gestão, a de dotar a Secretaria do pessoal necessário – havia um déficit de, pelo menos, 12.000 servidores, num universo de 26 ou 28 mil – dando ênfase especial ao recrutamento de profissionais de saúde pública.

A austeridade no trato da coisa pública, que era traço característico do secretário Leser, determinou que todos os funcionários (dos médicos ou técnicos mais especializados, aos serventes, atendentes e artífices) fossem admitidos por concurso, tornando proscritos todos os subterfúgios que eram usados para burlar essa exigência, que já era estabelecida nos estatutos legais vigentes. Através desses concursos mudou significativamente a composição dos funcionários: em lugar dos apadrinhados, subservientes aos desígnios de quem os indicava, passaram a disputar e a classificar-se para os cargos e funções existentes, todos aqueles que tinham a habilitação requerida pelos editais de concurso. Entre os novos funcionários estavam muitos dos profissionais que, ainda como estudantes ou professores, tinham tomado parte na movimentação dos anos anteriores contra a ditadura e pelas liberdades democráticas, ou no apoio aos movimentos populares por melhores condições de saúde, que se organizavam nos bairros, também naqueles anos.

Os cargos da carreira de médico sanitarista, que eram até então ocupados principalmente por médicos consultantes, promovidos a sanitaristas pela antiguidade no cargo, passaram a ser providos por jovens provenientes das residências ou cursos das áreas de Medicina Preventiva ou Medicina Social, e, por isso, já imbuídos dos conceitos básicos da reforma: da saúde como direito inalienável do cidadão, tendo como corolário a universalização do atendimento; da saúde como um processo global e não restrito à assistência individual ao doente; da valorização do trabalho em equipe; da negação do autoritarismo nas relações médico-paciente etc. e, especialmente, da compreensão de que a questão da saúde está intimamente relacionada com as condições de vida e de trabalho da população. O mesmo acontecia com os profissionais de outras carreiras que, de uma forma ou de outra, na escola, no ambiente de trabalho ou na convivência com os movimentos de bairro, vinham internalizando o que era conhecido como a "ideologia da saúde pública". Nada de extraordinário, portanto, que os funcionários do setor se sentissem extremamente solidários com a luta que era travada pelos metalúrgicos do ABC.

Não foi fácil a batalha para quem precisava lutar também no plano interno, contra as estruturas e procedimentos arcaicos que ainda caracterizavam o funcionamento dos serviços de saúde. Mas para aqueles que tinham passado sucessivamente pelos embates do movimento estudantil em 77, pela greve contra o Maluf, pela campanha da anistia de 79, pelas batalhas iniciais da reformulação partidária, não era novidade o enfrentamento da violência policial, das manobras de intimidação e das tentativas de desqualificação do movimento. Além da oportunidade, dos recursos, da motivação, tínhamos também o necessário know how para sustentar a luta nas duas frentes.
 

*Zilah Wendel Abramo, na época assessora da Secretaria de Estado da Saúde para a área de Recursos Humanos e militante do CBA/SP. Atualmente é vice-presidente da Fundação Perseu Abramo

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