"…Na profunda letargia em que estávamos mergulhados, na angústia da desesperança que a nossa alma, apequenava, algo começava lentamente a mover-se (…)."

Por Sérgio Mamberti*

Em meados da década de 70, o Brasil parecia encontrar-se anestesiado. O impacto das medidas autoritárias do Ato Institucional nº 5 e a truculência do Governo Médici haviam deixado marcas tão profundas na sociedade brasileira que apenas começávamos a emergir deste torpor e a nos dar conta de que o Governo Militar pretendia perpetuar o seu poder por muito mais tempo do que gostaríamos de supor.

O desmonte sistemático de todos os processos de participação, bem como do projeto cultural brasileiro, passou a ser meta prioritária para sua consolidação. Começando pela educação, o currículo escolar, as universidades e a escola pública, passava também pelo cinema, pela música e, principalmente, pelo teatro, que pleno de vitalidade na década de 60, foi espaço privilegiado para a discussão da nossa realidade e um dos mais aguerridos esteios da resistência. Por outro lado, as redes nacionais de televisão, criadas pela ditadura, exaltavam as benesses do novo regime e do milagre brasileiro, fortalecendo seu domínio. Porém, mesmo com as promessas de distensão anunciadas pelo governo Geisel, nada havia realmente mudado. Pelo contrário, sob a aparência de uma paz duradoura, de uma nação finalmente expurgada das inconveniências das lutas pela liberdade de expressão e pelos valores democráticos, tramava-se a morte ignóbil de cidadãos honrados como Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho, nos calabouços da repressão.

Para quem durante praticamente toda sua vida, havia participado destas lutas, no anseio de ver concretizada a utopia de um Brasil solidário e justo, de uma América Latina livre e progressista, aumentava cada vez mais a distância entre o sonho e a mísera realidade que tínhamos que enfrentar. E eu me perguntava se ainda seria possível, em meio a tanta bruma, vislumbrar um caminho que nos pudesse reconduzir à esperança de um dia alcançar os nossos objetivos. Mas parecia não haver nenhuma resposta para estas indagações. Uma monolítica imobilidade, aparentemente conformista, plasmava a sociedade brasileira.

O movimento operário sufocado pelas leis de exceção, como acontecia, aliás, com todos os movimentos sociais, estava terminantemente proibido de fazer reivindicações de qualquer espécie, sobretudo reivindicações políticas, sob pena de ir-se para a prisão e sabe-se lá o que: tortura e até mesmo a morte.

Quando em 78, no Estádio de Vila Euclides, aquele jovem operário barbudo mais um punhado de homens desaforados disseram não a tudo isto, uma rara claridade espalhou-se por toda nação brasileira, como que afirmando ser possível mudar, sim. Na profunda letargia em que estávamos mergulhados, na angústia da desesperança que a nossa alma, apequenava, algo começava lentamente a mover-se e a projetar perspectivas e alento para alimentar novas frentes de luta.

Naquele pequeno estádio, forjavam-se naquele momento histórico as matrizes para construção de um novo sentido de país e de nação. Hoje, apesar dos inegáveis avanços políticos das duas últimas décadas, mais uma vez nos deparamos com desafios ainda maiores, diante da ordem econômica excludente, imposta pela globalização e pela ideologia neoliberal.

Que o espírito de Vila Euclides possa inspirar-nos coragem e resolução, para vencermos outras etapas, rumo a uma época de prosperidade e justiça para todos.
 

* Sérgio Mamberti é ator