O término da novela mais acompanhada dos últimos tempos dá abertura para reflexões, como acontece com o fim de bons filmes ou bons livros. Só que a reflexão importante é feita num diapasão diferente; não sobre o conteúdo ou qualidade da novela, mas sobre o fenômeno popular do interesse que ela desperta. Meu filho voltava para casa no horário do último capítulo da Avenida Brasil e notou o trânsito diferente, as ruas  vazias como nos momentos de jogo do Brasil nas copas de futebol. Realmente extraordinário.

Não vi um capítulo sequer mas nem de longe condeno este hábito tão disseminado de ver novelas. Permito-me um resvalo para perspectivas pessoais: quando a gente passa dos oitenta torna-se muito mais seletivo no uso do tempo, na divisão das ocupações entre as do dever, aquelas imprescindíveis, e as do gosto, do prazer, não há um minuto a perder com outras opções. Não vou fazer uma relação completa das coisas que eu gosto: caminhar de manhã, mergulhar no mar, escrever e ler, meditar e rezar, ver um bom filme, ouvir música, conversar com amigos, tomar um vinho, jamais ver televisão, jamais, simplesmente porque não tenho nenhum interesse, acho tudo chato, mal assisto algum noticiário.

Mas claro que tudo isso é estritamente pessoal e a maioria, a esmagadora maioria, no Brasil e no mundo, tem na televisão sua principal fonte de lazer, entretenimento, e até de aprendizado. Isso é importante: grande parte dos povos do mundo aprendeu mais na televisão do que na escola. Eu me lembro, nos anos cinquenta, quando chegou aqui a televisão, iniciativa do gênio demoníaco do Chateaubriand, muita gente criticava o povo por morar mal, comer mal, vestir-se mal, mas ter uma televisão e dedicar a ela todo o seu tempo de lazer, sem mais ler nem conversar em família. Bem, era uma caricatura, mas uma crítica tida como muito procedente à época, quando se julgava que a televisão desviava o povo das atividades sérias e estava  formando cabeças ocas.

Hoje não dá para pensar assim. No Brasil, por exemplo, quem viveu nesse meio século e observou com atenção, verificou o grande salto no conhecimento geral do povo, conhecimento de geografia e de história do mundo, conhecimento de arte e de cultura, assim como na capacidade do povo de apreciar e criticar os fatos, principalmente de exprimir-se no falar, no falar mais corretamente e com vocabulário mais rico. Evidentemente uma grande parte dessa abertura mental e cultural, e dessa capacidade de expressão se deve às horas  dedicadas à televisão. Não há mais Jeca Tatu no Brasil e eu acho que essa abrangência de aprendizado decorre da presença da televisão na quase totalidade dos lares brasileiros. Não estou diminuindo em nada o papel da escola, que também foi massificada, com alguma perda de qualidade mas enorme ganho de quantidade. A televisão entretanto expandiu muito a informação da escola.

A televisão massifica o modo de pensar? Sim, claro, de um lado, sim, massifica e uniformiza muito. Mas  de outro, na medida em que melhora toda a articulação do pensamento pela via da expressão, melhora também a imaginação, a capacidade de enxergar outras vertentes da vida que não aquela da própria televisão, melhora, eu acho, bastante, a capacidade crítica do povo em geral apesar da pesada massificação. Bem, aí se abre uma polêmica. Interessante.

A informação trazida pela televisão é distorcida e interessada mas é informação, mostra o mundo e outras faces da vida que antes o caipira não conhecia; levanta perguntas que antes não lhe ocorriam. A formação escolar também é orientada pela mente das elites e essa é uma distorção, mas é informação; muito pior ficaria o povo sem ela.

O mais grave da televisão, a meu juízo, é a propaganda, a indução ao consumismo da classe média alta, indução que a própria novela, no todo, também acaba por produzir. Mas a novela, como o romance, gera emoções e devaneios, e essa atividade psíquica tem um potencial criativo, capaz de levar à imaginação de outras situações e expressões que findam por transcender a massificação. Por mais passiva que seja a atitude telespectadora, ela faz trabalhar a mente, e isso é muito melhor do que a inatividade mental do matuto de antigamente.

Bem, vamos discutir essa questão absolutamente primordial das comunicações no Brasil.; eu também preconizo e quero muito uma modificação substancial da nossa televisão, com uma boa abertura para a diversidade e para a interação com o público. Sob o ponto de vista político, então, acho a nossa televisão um horror. Só acho que não tem o poder de eliminar o sentimento crítico do povo que ela própria exalta; e a prova está nas vitórias eleitorais de Lula e de Brizola, do PT nessa eleições municipais, e até nas minhas próprias votações. E acho também que a existência dos canais institucionais, dos canais universitários e comunitários, e da estatal TV Brasil introduziram uma dimensão nova e relevante.

E acho, enfim, que as novelas de televisão não são tão negativas como muitos sustentam.

*Roberto Saturnino Braga, ex-senador (PT/RJ), autor de O curso das idéias, editado pela EFPA e membro do Conselho Curador da FPA.

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