O direito de comunicar e a liberdade de expressão
“A liberdade de imprensa deveria ser garantida não só em relação aos governos, como também em relação aos capitalistas e financistas”
A. Fouillé, político francês, em 1897
A liberdade de expressão é uma antiga reivindicação liberal, proclamada e teorizada desde o século XVII, por pensadores e ativistas políticos do porte de John Milton, Thomas Jefferson e John Stuart Mill, entre outros. Era obviamente, uma reivindicação que se inseria na luta da esfera pública cidadã contra o Estado: de um lado, os pensadores, os artistas, os publicistas, os políticos que construíam as idéias que iriam desembocar nas grandes revoluções inglesa, americana e francesa. Do outro, o reacionarismo do antigo Estado absolutista, de seus reis, suas nobrezas, seus funcionalismos corruptos e atrabiliários.
O Estado e, também, a Igreja arvoravam-se no direito (divino) de permitir, ou não, a expressão do pensamento. Publicar um livro ou um jornal exigia autorização prévia. Obras como Os Lusíadas ou D. Quixote não teriam sido editadas e impressas, se não tivessem obtido o “nihil obstat quominus imprimatur” (“nada impede que seja impressa”) da autoridade competente.
Então, não fossem o Estado e a Igreja, quase nada poderia coibir a livre expressão do pensamento e sua impressão. Uma vez escrito um livro ou um panfleto, a impressão, para reprodução e divulgação, poderia ser feita em gráficas que pouco haviam evoluído desde os tempos de Gutenberg. Era um processo simples e barato. Não seria exagerado afirmar que qualquer um capaz de escrever, seria capaz, se assim desejasse, de publicar. Claro, depois do “nihil obstat“…
É nesse ambiente que nasce o jornalismo. De meados do século XVIII até meados do século XIX, o jornalista era normalmente um indivíduo intelectualizado e politizado que gostava de escrever textos relativamente longos, sempre opinativos, não raro panfletários, sobre os temas em debate na esfera pública, publicando esses textos periodicamente, a cada semana, cada quinzena, cada mês. Os jornais eram autorais, escritos de cabo a rabo por uma só pessoa ou, em alguns casos, por uma pessoa e alguns outros colaboradores. Não raro, tinham só quatro páginas em formato in fólio, às vezes oito. Existiam jornais oficiais ou bancados por ricos comerciantes que divulgavam as notícias chegadas pelos navios mas, na grande maioria, o que se entendia por “jornal” eram essas publicações unipessoais, baratas, voltadas para agitar o debate político. E que só podiam cumprir esse papel, se houvesse liberdade de expressão e de impressão.
Isso começa a mudar no final do século XIX. A sociedade mudara, o Estado mudara, a natureza das lutas políticas mudara. Estava consolidada a democracia liberal que, agora, se via ameaçada por uma nova proposta revolucionária: a democracia popular dos trabalhadores. Ao mesmo tempo, as condições de produção, de trabalho e de vida cotidiana em um mundo urbanizado e altamente industrializado, demandavam novas formas de informação, entretenimento e cultura. Como demonstra o exitoso lançamento do New York Sun em 1833, havia um público formado basicamente por trabalhadores, interessado em ler um impresso periódico diário que, ao invés de discursos políticos, trouxesse notícias sobre fatos curiosos ou bizarros, ilustrações, palavras-cruzadas, humor, entretenimento. Nascia a imprensa de massa.
Para viabilizar essa transformação, seria necessário desenvolver tecnologias que possibilitassem a produção em larga escala: a telegrafia (permitindo que qualquer fato pudesse ser noticiado em qualquer lugar com defasagem máxima de 24 horas), a linotipo (acelerando o processo de montagem das páginas) e a rotativa (garantindo a impressão de centena de milhares de exemplares em poucas horas) viabilizariam o surgimento de um novo jornal e um novo jornalismo adequado a esses novos tempos. Mais adiante, surgem o rádio e a televisão, estendendo o jornalismo para além do impresso, para as freqüências hertzianas. Nessa evolução, o militante dará lugar ao profissional. E o empreendimento individual… à empresa.
Não seria possível sustentar esse jornalismo de massa sem a adoção de métodos empresariais de captação de recursos. O jornalismo panfletário liberal se sustentava na subscrição dos correligionários. Geralmente, o próprio jornalista tinha outros meios de sobrevivência, era médico, professor… O jornalismo de massa, assalariando centenas de profissionais e exigindo maquinaria, torres, satélites, requer fundos iniciais de investimento e recursos para sua permanente reprodução. Os fundos iniciais poderão vir de banqueiros, comerciantes, industriais. Os recursos de manutenção virão da publicidade. O jornalismo impresso ou radioelétrico torna-se um negócio capitalista. E o proprietário do meio de comunicação, mais do que notícias ou idéias, vende espaço de página para anunciantes, ou tempo de tela de TV. O seu principal objetivo já não é mais fazer alguma revolução, mas obter um bom lucro com o seu negócio.
Apesar de tão extraordinária mudança, a velha idéia da liberdade de expressão continuou a demarcar a deontologia do jornalismo. Liberdade de expressão, sim, mas para os meios empresariais. Por todos esses últimos cento e tantos anos, não faltaram censura, repressão, violência sobre os jornais e outros meios de comunicação das classes trabalhadoras, em todas as democracias liberais.
Em geral, o Estado, numa democracia (liberal) avançada e consolidada, sobretudo em tempos mais recentes, deixou de ser o grande obstáculo à liberdade de expressão. Hoje em dia, até mesmo jornais críticos dos trabalhadores ou de movimentos radicais podem ser comprados nas bancas de revistas. O maior obstáculo à liberdade de expressão passou a ser a grande empresa jornalística. É mais do que evidente que o jornalista profissional não poderá escrever algo que contrarie uma nem sempre muito explícita “linha editorial” da empresa que lhe paga o salário. É verdade que existem exceções – apenas para confirmar a regra. Por outro lado, o profissional, como todo profissional, quer fazer carreira. É da vida. Mas, no jornalismo, fazer carreira significa demonstrar-se útil, o mais competentemente possível, à “linha editorial” do jornal. O bom profissional será aquele que nenhum patrão precisará dizer-lhe o que fazer e, melhor ainda, será aquele que lembre ao patrão como fazer… Nesta carreira não pode haver contradição de classe. Aqueles que não se ajustam – e eles, felizmente, existem – permanecerão em posições subalternas ou buscarão caminhos “alternativos”.
Construíram-se assim autênticas “máquinas de informar” (título de um livro já antigo de Ben Bagdikian). Grandes tecno-burocracias decidem, diária ou semanalmente, o que é ou não é “notícia”, o que é ou não é “opinião legítima”, o que é ou não é “relevante”. Se não está publicado, não aconteceu. Se o colunista escreveu a sua “verdade” mas não há algum outro colunista que possa apresentar alguma outra “verdade”, apenas aquela daquele colunista será “a verdade”. Em princípio, ninguém estará impedido de investir em um outro meio politicamente orientado que possa contraditar os meios comerciais. Desde que consiga levantar o volume de recursos que precisará para produzir, diária ou semanalmente, um jornal ou revista, sem falar na emissora de rádio ou televisão, que atraia o interesse de 300 mil, 500 mil, 1 milhão, 30 milhões de pessoas. A censura não precisa mais ser praticada pelo Estado. Será praticada pelos bancos e outros investidores potenciais que não se interessarão em investir num meio realmente crítico. Será praticada pelos anunciantes que não anunciarão num meio mais interessado em formar cidadãos do que produzir consumidores. Ou no nível micro, aquele da produção direta, no chão-de-fábrica das redações, a censura será praticada pelos editores, subeditores, até mesmo pelos repórteres e redatores, que selecionam o “ângulo” pelo qual abordar o “fato” (desconsiderando outros “ângulos” e outros “fatos“), o “destaque” da “matéria” na página (ou até se o “fato dá matéria“), o “assunto” que merece entrar para a história… Admitamos que, em sua grande maioria, esses editores ou repórteres, como diria Jesus Cristo, não sabem o que fazem. Mas fazem.
Muito mais do que nos tempos de Jefferson, Milton ou Mill, até porque a população multiplicou-se por milhões e o próprio sistema capitalista diversificou interesses e contradições, muito mais do que naqueles tempos, existe hoje em dia uma enorme parcela da sociedade que não se vê noticiada e representada no jornalismo atual. Uma diversificada e multifacetada esfera pública, não mais homogeneamente “burguesa” (como aquela outra foi definida por Habermas), quer também se manifestar e mobilizar. Produz seus pequenos jornais, seus panfletos e, hoje em dia, lança mão, com vigor, dos recursos permitidos pela internet (até quando?). São grupos sociais e políticos que têm o que dizer. Exigem o direito de dizê-lo. Não aceitam que uma tecno-burocracia sustentada pela produção de consumo, desqualifique e silencie o que será de fato relevante para esses grupos sociais quase sempre à margem do consumo conspícuo. Exigem também o direito de comunicar, hoje exclusivo das forças do mercado que controlam a grande imprensa. Como praticamente não há mais censura do Estado (apesar de, no Brasil, algumas assustadoras decisões judiciais recentes contra blogueiros), a questão contemporânea é a de dotar esses segmentos dos recursos necessários para também se fazerem ouvir por milhões de pessoas, assim estabelecendo o contraponto que não se vê nas páginas ou nas telas do jornalismo comercial de massa.
Se o Estado liberal praticamente assegurou a liberdade de expressão, o Estado democrático deverá garantir o direito à comunicação. No caso brasileiro, se fosse posta em prática, regulamentando, a nossa Constituição, já lograríamos aí um grande avanço. No entanto, exatamente isto temem os proprietários e a tecno-burocracia dos meios comerciais: perderiam o monopólio que hoje exercem sobre esse direito exclusivo de selecionar o que comunicar. À perda desse monopólio, denunciam como ameaças à liberdade de expressão… deles. Uma liberdade que eles têm, por exemplo, para ocupar uma ou duas páginas inteiras de seus jornais com a reunião da SIP que se inicia esta semana, em São Paulo. E que também têm para não dar uma única linha, ou dar apenas notinhas tendenciosas, sobre a Iª Confecom que reuniu 1.600 pessoas, inclusive representantes empresariais, em Brasília, no final de 2009. Liberdade que também têm para não divulgar a “Plataforma para um novo marco regulatório das comunicações no Brasil” (http://www.comunicacaodemocratica.org.br/), um programa que, se aplicado, não iria silenciar ninguém, mas permitiria que muitas outras vozes, hoje silenciadas, pudessem também se expressar em liberdade.
*Marcos Dantas é professor titular da Escola de Comunicação da UFRJ.