Sebastião C. Velasco e Cruz
LEMBRANÇAS DO AI-5
Caminhávamos placidamente, minha amiga e eu, quando a voz ofegante de um conhecido nos deu a notícia: "Naum foi seqüestrado!". Era noite, 13 de dezembro de 1968; estávamos em Icaraí, na cidade de Niterói (RJ).
Como a de tantos jovens da mesma geração, minha vida foi profundamente marcada pelo AI-5. Tendo o meu nome na lista de participantes de Ibiúna com prisão preventiva decretada, a leitura dos jornais no dia seguinte deixava claro que a polícia poderia chegar a qualquer instante. Rompido, porém, com minha antiga organização há pouco mais de um ano, não me dispunha a abandonar a condição de "independe" pela mera força das circunstâncias. Assim, depois de alguns dias de semiclandestinidade, decidi voltar para casa e aguardar os acontecimentos com calma.
Era esse o meu estado de espírito quando militares à paisana me conduziam à Fortaleza Santa Cruz, onde permaneci cerca de um mês aguardando interrogatório. Desse período, lembro-me sobretudo das longas conversas com o "hóspede mais célebre da casa", Darcy Ribeiro, cuja generosidade imensa certa feita o fez ouvir com ar convincente de atenção os comentários que a minha petulância juvenil formulava a texto seu ainda mal datilografado.
Depois fui transferido para São Paulo. Primeiro estive na PE, onde sofri agressão, mas não fui torturado. A não ser pelo brilho metálico da luz permanentemente acesa no teto, e pelos gritos lancinantes que vinham de uma câmara próxima. Passei, em seguida, pelo REC-MEC, e terminei no [Presídio] Tiradentes, onde dividi cela, durante mais de quatro meses, com dúzia e meia de companheiros dos quais guardo lembrança saudosa. Entre eles, Jorge Baptista, de quem me tornei amigo, e a quem, com esta menção, presto modesta homenagem. Solto em julho de 1969, logo retomei meu curso de Ciências Sociais.
O AI-5 mergulhou o Brasil na ditadura declarada. No que me toca pessoalmente, o que a experiência do AI-5 deixou de mais fundo foi, para além das discordâncias, o sentimento reforçado de identidade com meus companheiros; a lembrança dos cuidados de que, ainda quatro anos depois, nos cercávamos quando discutíamos política, e – sobretudo – o testumunho direto da violência bestial que se abate cotidianamente sobre a massa anônima dos presos comuns, dejetos de uma sociedade opressiva com a qual não pude jamais me reconciliar.
*Professor do Departamento de Ciência Política da UNICAMP.