QUE DECEPÇÃO…

 

Quando voltei para a redação na sexta-feira 13, por volta das 9 horas da noite, um grupo cercava um rádio que transmitia notícias em tom solene. A moçada – éramos todos moços – não parecia assustada, embora algo muito grave estivesse acontecendo. Alguém, ali no meio, disse: "Este negócio não vai pegar". Acho que foi o Hamilton de Almeida, o Haf, companheiro que recordo com saudade e que saiu da vida antes do tempo. Eu disse: "Não se iludam". E não me acometeu o receio de ser confundido com a Sibila de Cuma.

Lembrei-me de fatos contados por meu pai. A referência, inclusive, a uma comédia musical de grande sucesso na Itália dos anos 20, intitulada "Dura minga", que em dialeto milanês significa "não dura". Benito Mussolini, o duce do fascismo, dois anos depois de assumir o poder a convite do rei Vitor Emanuel III com o compromisso de governar dentro da Constituição, fechou o Congresso e instalou uma ditadura totalitária. A Marcha sobre Roma o conduzira ao posto de primeiro-ministro em 1922, o golpe é de 1924. Mas houve quem solfejasse dura minga. Por exemplo, um jovem Vittorio de Sica, galã do teatro musicado.

A comédia durou pouco e a ditadura mussoliniana mais de 20 anos. Foi o que me ocorreu naquela sexta-feira, 13 de dezembro de 1968 – e assim não temi me parecer com alguma pitonisa ao recomendar o senso do realismo. A moçada vivia inebriada pelas brisas renovadoras de 1968, aragens irreverentes que chegavam até aqui, e até aquele grupo esperançoso mesmo ao ouvir o roteiro da tragédia. O negócio que não haveria de dar certo era o Ato Institucional nº 5. O golpe dentro do golpe.

Naquele tempo, eu dirigia a redação de Veja, a qual tinha apenas três meses de vida. A revista circulava às segundas, exclusivamente nas bancas, e a redação encerrava o expediente na noite de sábado. A sexta era crucial para a definição da capa, dia em que muitos trabalhavam até 18 horas, vendo o sol se pôr e ressurgir além das vidraças do edifício Abril às margens do Tietê. E na sexta-feira 13 de dezembro de 1968 extraímos do arquivo uma foto do general-presidente de plantão, Costa e Silva, sentado no meio do Congresso vazio, imagem de alguns meses antes colhida em não sei qual circunstância, e a estampamos na capa. A revista foi apreendida nas bancas na manhã de segunda e os porta-vozes do regime afirmaram que aquela capa era fotomontagem.

Em matéria de apreensões, Veja não era novata, apesar da pouca idade. Já fora retirada das bancas pelos janízaros fardados na sua quinta edição, que apresentara a cobertura do congresso da UNE realizado em Ibiúna e dissolvido à força com a prisão de cerca de mil estudantes. Mas do AI-5 nasceu um longo período de censura, intermitente de início, depois estável, e que somente terminou com a minha saída da direção da revista, no primeiro semestre de 1976. A Editora Abril, que negociava com o governo a consolidação no Brasil de um empréstimo de várias dezenas de milhões de dólares contraído junto a instituições financeiras internacionais, com a minha saída alcançou finalmente o seu objetivo e a preciosa grana, saída dos cofres da Caixa Econômica Federal.

Esta é uma história que figura entre as minhas melhores lembranças profissionais e que vale para ser contada aos netos nas noites de inverno e – por que não? – nas demais estações. Sem deixar de anotar o extraordinário destemor de Roberto Civita, atual boss da Abril, o qual entregou minha cabeça ao então ministro da Justiça Armando Falcão e hoje se apresenta, com a expressão de Buster Keaton, sem mexer um único, escasso músculo facial, como um resistente dos anos de chumbo. Mais um pouco, e sustentará ter sido torturado.

Diga-se que só assumi a direção de Veja porque os donos da Abril se comprometeram formalmente a discutir cada edição da revista só depois que saísse às ruas. Naquele tempo, em que a ameaça do AI-5 pairava no ar, os senhores Civita viam o Brasil como terra de grandes oportunidades, coqueiros à beira-mar e caipirinha de maracujá. Mas o próprio Falcão, a quem solicitei uma audiência para entender os eventos, soletrou: "Mino, o que haveria de fazer? Os donos da Abril vinham aqui e me diziam que você era o responsável pela posição da Veja…" De fato, era.

Não é que Roberto Civita seja único nas suas aspirações a herói. Vejo na televisão a propaganda de jornais que jamais foram censurados e que agora falam da ditadura como se tivessem sido suas vítimas. E a revista Época sai com uma memorável edição sobre a comemoração – ou anticomemoração? – do AI-5 orientada, salvo melhor juízo, por uma atitude de franco repúdio. Não é de se duvidar, no entanto, que se a Época estivesse na praça naquela sexta 13, bateria palmas.

Isso tudo, de qualquer maneira, é altamente representativo da situação que vivemos. O AI-5 foi extinto no ocaso do governo do general-presidente de plantão Ernesto Geisel. Mas os efeitos do golpe de 1964, e do golpe dentro do golpe de 1968, perduram até hoje. O poder incompetente e corrupto que aí está, assolando o País, é o fruto inescapável da ruptura imposta pela oligarquia há 30 e poucos anos e prontamente aprovada pelos aspirantes ao privilégio. Vigora, ainda e sempre, o propósito de fazer uma democracia sem povo, confiando na resignação do próprio. Na cordialidade, já houve quem sugerisse.

Ao grupo reunido em torno de um rádio, há 30 anos, propus algum ceticismo. Pressentia a chuva negra. Nem por isso perdemos as esperanças, céticos na inteligência e otimistas na ação. Um dia haveria de raiar o sol. Recordo o culto ecumênico na Sé de São Paulo no sétimo dia do assassínio de Vlado Herzog. Também sexta, a última de outubro de 1975. Havia ali milhares de brasileiros dispostos a desafiar o regime, simbólicos de uma fé notável. Me pergunto se alguém, entre eles, seria capaz de imaginar o Brasil neste 13 de dezembro de 1998.

O Brasil de Fernando Henrique, de Antonio Carlos Magalhães, de Luis Carlos Mendonça de Barros. Do leilão da Tele Norte Leste, do grampo na presidência do BNDES, do Banco Opportunity. O Brasil que mais uma vez bate miseravelmente à porta do FMI. O Brasil dos juros astronômicos, temerariamente atrelado aos interesses do capital financeiro internacional. O Brasil mais neoliberal que o neoliberalismo, vice-campeão mundial em desigualdade social. O Brasil dos carros blindados e das nobres vivendas cercadas por muralhas de porte medieval, etc., etc.

Sejamos francos. Apesar dos pesares, há 30 anos, mesmo aquela noite sombria, a gente esperava por um Brasil melhor.


*Jornalista, editor da revista
CartaCapital.