Com a responsabilidade que lhe confere o cargo de Secretário Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), D. Ivo Lorscheiter informava à imprensa, no dia 30 de julho último, ter recebido "de fontes fidedignas de Brasília e de Goiás um alerta de que seria iminente a expulsão de D. Pedro Casaldáliga do Brasil". D. Pedro, como se sabe, é espanhol.

Na semana anterior, em 22 de julho, deixava o Brasil o missionário menonita em Recife, Thomas Capuano, norte-americano, preso dias antes com o Pe. Lawrence Rosenbaugh, norte-americano também. Os dois exerciam sua ação pastoral junto aos mendigos da cidade. Solto quatro dias depois, o missionário foi obrigado a sair do país porquanto o Governo brasileiro negara a renovação do seu visto de permanência.

No começo desse mesmo mês de julho, o Ministro da Justiça determinara a instauração de inquérito, pela Superintendência da Polícia Federal de Pernambuco, para efeito de expulsão do Pe. Romano Zufferey, suíço, trabalhador no Nordeste há mais de dez anos como assistente eclesiástico da Ação Católica Operária (ACO).

Na verdade, esses três casos de expulsão ou de ameaça de expulsão não são os primeiros que atingem as Igrejas desde 1964. Eles fazem parte de uma série que inclui, entre estrangeiros e brasileiros (estes, banidos ou exilados), os seguintes:
Já em abril de 1964, o Pe. Francisco Lage, antigo pároco na Igreja da Floresta em Belo Horizonte (MG), conhecido por sua atuação junto ao movimento sindical, foi preso, indiciado e processado. Condenado a 28 anos de prisão, asilou-se na embaixada do México, de onde seguiu para o exílio nesse país.

No ano de 1966, era expulso do país o pastor norte-americano, Brady Tyson, acusado de ter pronunciado uma conferência em Ribeirão Preto (SP), na qual criticava o Governo brasileiro.

No dia 5 de novembro de 1967, o Exército prendeu em Volta Redonda (RJ), o diácono francês Guy Thibault, acusado da distribuição de panfletos que falavam da situação operária e analisavam a política salarial do Governo. Sua expulsão foi decretada no dia 7 de dezembro.

No dia 27 de agosto de 1968, consumou-se a expulsão do Pe. Pierre Wauthier, francês, preso desde 18 de julho, durante a realização da "greve de Osasco" (SP).

O Pe. Jan Honoré Talpe, belga, foi preso no começo do ano de 1969, acusado de subversão em fábricas de Osasco (SP). Depois de seis meses de prisão, foi expulso, em 8 de agosto de 1969.

Acusada de ter dado proteção a elementos subversivos, em Ribeirão Preto (SP), a Irmã Maurina Borges foi presa em 1970 e banida para o México.

Frei Tito de Alencar Lima, dominicano, preso em São Paulo desde novembro de 1969, acusado de subversão, foi banido para o Chile em 3 de abril de 1971.

Neste mesmo ano de 1971, o Pe. José Pedandola, italiano, que exercia sua ação pastoral entre os pobres da diocese de Crateús (CE), foi preso pela Polícia Federal e expulso do país.

O Pe. José Comblin, belga, professor no Instituto Teológico do Recife (PE), conhecido por sua pregaçao em favor dos oprimidos, ao regressar da Europa, em 24 de março de 1972, foi impedido pela Polícia Federal de desembarcar no Brasil e mandado de volta.

Em 1975 foi a vez do Pe. Francisco Jentel, francês, que, em Santa Terezinha, nos confins de Mato Grosso, Goiás e Pará, vinha trabalhando a favor de posseiros da região. Foi preso e condenado mas, no ano seguinte, absolvido. Viajou, então, para a Europa. De volta ao Brasil, com o passaporte em regra, seguiu para Fortaleza (CE). Mesmo sob a proteção do Presidente da CNBB, D. Aloísio Lorscheider, Jentel foi preso, sendo expulso em 15 de dezembro de 1975.

Pároco de Vila Rondon (PA), o Pe. Giuseppe Fontanella, italiano, foi acusado de estimular posseiros a invadir terras particulares. Foi chamado a prestar depoimento no Quartel General da 8ª Região Militar, em Belém (PA), e, em 8 de dezembro de 1976, saía publicado o decreto de sua expulsão.

Tratar-se-ia, nessa série de expulsões e banimentos, de fatos desconexos, cada um deles fruto de circunstâncias específicas? Ao contrário, verifica-se uma coerência nessa ação repressiva. Ela tem o mesmo sentido de outras violências praticadas contra brasileiros e estrangeiros, independentemente da confissão religiosa, cuja ação seja considerada inconveniente pelo Governo ou por grupos dominantes.

Entre muitos brasileiros processados, presos, torturados, condenados e até assassinados, lembrem-se apenas alguns casos mais recentes de perseguição contra religiosos, ocorridos desde julho do ano passado. O assassinato do Pe. João Bosco Burnier ocorreu quando, com D. Pedro Casaldáliga, protestava contra as torturas que estavam sendo infligidas a duas mulheres inocentes pela polícia de Ribeirão Bonito (MT). No momento, continua indiciado D. Estêvão Cardoso Avelar, Bispo de Conceição do Araguaia, no sul do Pará, tendo sido interrogado durante horas a fio, acusado de subverter o povo da região.

Também se inscrevem nesse quadro os atos de violência, estimulados pela ação repressiva e por campanhas de calúnias e insinuações partidas de autoridades, contra os que se empenham na luta pela justiça. Dois casos mais recentes, igualmente ocorridos com religiosos, depois de julho de 1976, podem ser citados como exemplos. O assassinato do Pe. Rodolfo Lukenbein, alemão, missionário entre os índios, ocorreu quando cuidava da demarcação das terras dos mesmos. D. Adriano Hipólito, Bispo de Nova Iguaçu (RJ), sofreu uma bárbara e misteriosa agressão e, em seguida, seu carro foi destruído por uma bomba diante da sede da CNBB, no Rio de Janeiro (RJ). Nesse último caso tornou-se estranha a rapidez com que o inquérito foi arquivado sem elucidação, especialmente quando se considera o costumeiro empenho de reprimir os atos de oposição.

 

Identificação com os oprimidos

O que fizeram esses e outros cristãos para serem perseguidos?

Eles foram presos, expulsos, banidos, torturados e mortos justamente porque lutavam ao lado dos pobres, dos humildes, dos pequenos, dos oprimidos. Sua dedicação desinteressada revela amor pelos oprimidos e denuncia, ao mesmo tempo, diversas formas de opressão. Sua atuação exemplar – ao lado dos índios, de apoio aos pequenos agricultores e posseiros, junto aos operários e marginalizados – desvenda algumas das injustiças instituídas na sociedade brasileira.

Pela ação e pelas palavras de missionários, fica claro que o extermínio de índios encontra suas raízes na ganância de fazendeiros e de grandes empresas que querem se apropriar da terra que ainda resta às populações nativas. Diversos métodos servem aos propósitos dos exploradores: estradas penetram reservas indígenas e recortam suas propriedades; a violência chega ao morticínio de índios e de seus defensores; a política de "integração" arrasta fatalmente o índio a se tornar mão-de-obra duramente explorada nos seringais e nas fazendas. Não apenas a sobrevivência das pessoas é ameaçada, mas todo um povo é massacrado ao lhe roubarem a posse da terra, privando-o das condições necessárias para cultivar seus valores e conservar sua própria identidade.

A dedicada ação de religiosos católicos, pastores protestantes e leigos – lado a lado com pequenos agricultores, posseiros e assalariados rurais – revela a trágica situação de miséria de grande parte da população que trabalha no campo. Suas terras, suas casas, suas plantações são arrasadas pelo crescimento selvagem do latifúndio e das grandes empresas agrícolas. Suas condições de vida e de trabalho tornam-se mais duras. Numa trágica contradição, enquanto os favores econômicos governamentais multiplicam as cabeças de gado e ampliam as plantações, o pequeno lavrador vê minguar a alimentação de sua família.

A atuação desses religiosos também se faz sentir entre os operários, que estão no núcleo da produção da riqueza brasileira. Eles foram atraídos às cidades para preencher os empregos da moderna indústria que se instalou em nosso país. Vindos do campo ou descendentes de famílias operárias que já estavam nas cidades, eles cresceram em número. Viram e vêem todos os dias a produção das fábricas em que trabalham crescer em volume e qualidade. Viram e vêem todos os dias seus patrões se enriquecerem de uma forma insultante. Viram e vêem seus salários diminuírem pelo arrocho salarial imposto pelo Governo e pelo constante aumento do custo de vida. Viram e vêem a necessidade de empregar seus filhos menores, prejudicando seu desenvolvimento normal e sua formação escolar. Viram e vêem seus sindicatos mutilados, sujeitos à intervenção constante do Governo, impedidos de desenvolver livremente suas tarefas fundamentais de representação e de defesa da classe trabalhadora. O resultado de tudo isso é o operário cada vez mais sacrificado, com fome e sem resistência às doenças.

A ação desses cristãos também revela a opressão da vida de milhões de brasileiros marginalizados da vida econômica, da vida social e da vida política do país. Chegando às cidades em busca da miragem industrial ou expulsos do campo, eles são os marginalizados urbanos e os bóias-frias. A ironia consiste em dizer que há pessoas marginalizadas, sem emprego certo e remuneração adequada, porque a população cresce demais. A verdade é que, para que se dê a concentração da riqueza nas mãos de poucos, não basta rebaixar os salários. É preciso, além disso, manter uma imensa parcela de população que, quando se emprega, se emprega por qualquer preço; e, quando não consegue emprego, constitui a reserva de que se valem os patrões para fazer com que os próprios trabalhadores disputem entre si pela possibilidade de um trabalho. Existe, assim, uma enorme parte da população das grandes cidades que jamais se empregará ou, quando o fizer, será parcialmente, como biscateiros, vendedores ambulantes, guardadores de carros, sem qualquer garantia. E os operários rurais, que se concentram nas pequenas e médias cidades, maldosamente apelidados de bóias-frias, são vítimas da intermediação do "gato", que os contrata como animais de trabalho para os grandes fazendeiros e empresas rurais. Sujeitos à procura diária de emprego, os bóias-frias não contam com a garantia do salário mínimo, nem têm a proteção – ainda que precária – das leis trabalhistas, ficando desassistidos e roubados nos seus direitos de assistência médica e previdenciária. Juntam-se a essas categorias as mulheres, que são duplamente exploradas: ganham salários menores, quando fazem o mesmo tipo de trabalho que os homens, e arcam, ainda, com as pesadas tarefas do lar. Há também aqueles que, atingindo certo limite de idade, são precocemente desempregados porque seus patrões sabem que um imenso exército de jovens está em busca de emprego e que os jovens produzirão mais por menores salários. A multidão dos marginalizados nas grandes, médias e pequenas cidades cresce à medida que cresce a riqueza produzida no país.

As exigências do Evangelho

A identificação desses religiosos com os oprimidos foi determinada por sua aceitação das exigências do Evangelho.

Eles sofrem perseguição porque compartilham da luta dos oprimidos contra a injustiça. Compartilham, também, de sua grande esperança de libertação. Eles, testemunhas fiéis, e nós, solidários com eles, compreendemos que a perseguição recai sobre a Igreja empenhada na transformação do mundo, dedicada a transmitir a Boa Nova da libertação onde exista a exploração dos homens de carne e osso, na realidade de agora. Sabemos também que a Igreja não sofre perseguição quando se acomoda às injustiças, atuando somente na esfera tranqüila da sacristia e voltando-se para uma espiritualidade abstrata, desligada dos problemas atuais.

É a busca evangélica da justiça que – na perseguição a esses religiosos – está sendo recusada pelo Governo. Busca evangélica fundamentada na Palavra de Deus:

"Bem-aventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem e vos perseguirem e, mentindo, disserem todo mal contra vós" (Mt 5,11). "Antes importa obedecer a Deus do que aos homens" (At 5,29).

"Porque tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era forasteiro e me hospedasses; estava nu e me vestisses; enfermo e me visitasses; preso e fostes ver-me. Em verdade vos afirmo que sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes" (Mt 25, 35, 36, 40). "O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos" (Lc 4, 18). "Eis que o salário dos trabalhadores que ceifaram vossos campos, e que por vós foi retido com fraude, está clamando" (Tg 5, 4). "Porventura não é esta a prática religiosa que escolhi, que rompas as correntes da iniqüidade, desfaças as amarras da servidão, libertes os oprimidos e despedaces todo jugo?" (Is 58, 6). "Se alguém disser: Amo a Deus, e odiar a seu irmão, é mentiroso" (1 Jo 4,20). "Ele te declarou, ó homem, o que é bom; e que é o que o Senhor pede de ti, senão que pratiques a justiça e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus?" (Miq 6, 8).

 A aspiração democrática do povo

Por comungar com as aspirações do povo é que os missionários são perseguidos. Eles sofrem a mesma sina de muitos, brasileiros ou não – operários, estudantes, jornalistas, educadores, políticos e outros – que foram banidos do país ou constrangidos a fugir por terem ousado juntar-se ao novo em sua luta contra a exploração e a opressão.
Se alguns missionários estão ameaçados de expulsão e se muitos já foram expulsos, o grande e verdadeiro expulso, já há muito tempo, é o próprio povo, especialmente os mais humildes, banidos de suas terras ou massacrados em suas aldeias, obrigados a esmolar ou sujeitos a salários de fome, morrendo à míngua nas periferias das cidades, constantemente expostos à repressão policial ou à violência dos patrões, proibidos de se associarem, ameaçados e intimidados quando ousam reivindicar os mais elementares direitos.

Não basta exigir que o Governo ponha fim às arbitrariedades contra os missionários. As arbitrariedades continuarão, se continuarem as estruturas de injustiça que as provocam. E essas estruturas só serão modificadas quando o próprio povo puder propor e encaminhar as mudanças a seu favor. É indispensável, portanto, realizar a aspiração democrática da nação, de modo que o povo possa criar e participar livremente de suas organizações, sindicais, profissionais, políticas e outras. Será possível, então, construir uma sociedade baseada no respeito aos direitos de todos e iniciar a caminhada rumo à comunhão e à paz entre os homens. Nosso compromisso é o mesmo dos missionários perseguidos o de continuarmos com o povo nessa árdua e longa caminhada.

São Paulo (SP), 18 de setembro de 1977

MOVIMENTO JUSTIÇA E LIBERTAÇAO:

– Comissão Pontifícia Justiça e Paz (SP)
– Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE)
– Comissão Arquidiocesana dos Direitos Humanos e dos Marginalizados
– Comissão de Ecumenismo da Arquidiocese de São Paulo
– Comissão Arquidiocesana da Pastoral da Periferia
– Comissão Arquidiocesana da Pastoral do Mundo do Trabalho
– Ação Católica Operária (ACO)
– Renovação Cristã de São Paulo
– Frente Nacional do Trabalho (FNT)
– Comissão de Mães em Defesa dos Direitos Humanos
– Movimento Feminino pela Anistia
– Secretariado Justiça e Não-Violência
– Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES)
– Associação dos Sociólogos do Estado de São Paulo (ASESP)
– Associação dos Professores da PUC (APROPUC)
– Associação dos Professores da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas
– DCE Livre da USP – "Alexandre Vanucchi Leme"
– Diretório Central dos Estudantes da PUC
– Centro Acadêmico da Fundação Getúlio Vargas
– Comissão Arquidiocesana de Pastoral das Comunidades Eclesiais de Base

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