Na Venezuela, missões reorganizam serviços públicos e enfrentam pobreza
Conforme o carro se afasta do centro de Caracas pela autopista que leva até a cidade de La Guaira, a paisagem se transforma em questão de minutos. Se antes a profusão de prédios e outdoors de propaganda era maioria, agora é a aglomeração de construções humildes de Catia, área metropolitana da capital, que chama a atenção. Justamente nesse mar de casas de alvenaria empilhadas umas nas outras desponta um prédio vermelho e branco, com cara e cheiro de novo. “Mudei faz só 15 dias”, conta Suyin Morales, assim que abre a porta do elevador.
“Sejam bem-vindos ao A4-03”, diz sorridente ao entrar em seu apartamento, um dos 40 dessa construção feita com dinheiro da Gran Misión Vivienda, programa de moradia do governo da Venezuela lançado em 2011. Trata-se de um espaço de 70 metros quadrados, divididos entre sala, cozinha americana, dois quartos e um banheiro. “Toda a mobília foi entregue pelas autoridades”, afirma Suyin, que antes de chegar ali era sem-teto. “Perdi tudo em uma enchente, inclusive minha casa. Fui parar em um abrigo com meu marido, filhas e netos; éramos oito naquele buraco”, lembra.
Foram dois longos anos até ser chamada pelo Ministério de Habitação e Habitat. Suyin conseguiu sua casa, mas, de acordo com cálculos do governo, há um déficit habitacional de mais de 2,7 milhões de residências. São 3.742.226 chefes de famílias inscritos no registro – 73,6% precisam de casas novas. “Foi a primeira vez que um governo deu casa para as pessoas, de graça. Não se ajudava os mais pobres antes”, diz Suyin.
De acordo com estimativas levantadas pelo governo, pela CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) e outras organizações internacionais, de 1984 a 1995 a população pobre venezuelana aumentou de 36% a 66% e os em pobreza extrema triplicou: de 11% foi a 36%. Além disso, entre 1981 e 1997, a participação dos pobres na renda do país caiu de 19,1% para 14,7% e o naco dos mais ricos aumentou de 21,8% para 32,8%.
Em 1998, 70% da população não tinham acesso aos serviços de controle de saúde ou não estavam cobertas por qualquer sistema de proteção financeira. A maioria dos adolescentes e jovens não se encontrava mais no sistema educacional. Frente a este panorama, as missões são criadas em um contexto de profunda crise social.
De acordo com a mestre em História pela UFF (Universidade Federal Fluminense), Mariana Bruce, em sua tese sobre as missões, esses programas se estruturam “a partir da preocupação em aliar reformas sociais ao fomento à atuação organizada das classes populares”. Para ela, foi assim que “para além de um programa assistencialista, foi pensado como um dos principais instrumentos responsáveis pela construção de um novo modelo social e econômico”.
Financiadas com o dinheiro do petróleo, as missões surgem em um momento de conflito político agudo. Com o governo ainda abalado pelo golpe de abril de 2002 e a paralisação patronal de dezembro do mesmo ano, transformações sociais de impacto tardavam e os venezuelanos estavam insatisfeitos. Buscando reorganizar e consolidar base política e eleitoral, o presidente Hugo Chávez apostou nas missões.
Em conversa com Fidel Castro, o líder venezuelano pediu apoio para seu plano. “Eu lhe disse: ‘olhe, tenho essa ideia, atacar por baixo com toda a força’. Ele me respondeu: ‘Se tem algo que sei é isso, conte com todo o meu apoio’. E começaram a chegar os médicos às centenas, uma ponte aérea, avião pra lá e pra cá”, relatou Chávez, em novembro de 2004.
As missões
A missão Barrio Adentro, cuja gênese é mencionada na conversa entre Chávez e Fidel, inaugurou a era das missões na Venezuela. Mas a cooperação entre Venezuela e Cuba e a real origem da missão de saúde remonta a 1999, quando voluntários cubanos foram ao país em caráter humanitário após um desastre natural que afetou dez estados. Estava semeada a primeira missão.
No início, os médicos cubanos ficavam hospedados em casas de família. Com o desenvolvimento do projeto, no entanto, pequenas casas, de dois andares, foram construídas no interior das localidades mais necessitadas da Venezuela. Ali, os cubanos prestavam serviço de saúde primária, como exames e aplicação de vacinas, com o intuito de prevenir o desenvolvimento de enfermidades e desafogar os corredores dos hospitais.
Até 17 de abril desse ano, quando a missão Barrio Adentro completou nove anos, foram realizadas mais de 500 mil consultas médicas gratuitas, de acordo com o governo. Com a ampliação do programa, mais de oito mil médicos venezuelanos se formaram na UBV (Universidade Bolivariana da Venezuela).
As missões obtiveram resultado significativo também na educação. A Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) declarou a Venezuela como território livre do analfabetismo em 2006, três anos após o começo da missão Robinson, programa que ensinou 1,6 milhão de venezuelanos a ler e escrever. Essa missão contou também com o apoio do governo cubano, que forneceu professores, tecnologias e o próprio método de alfabetização, o “Yo si, puedo”.
A missão Robinson foi seguida pela missão Robinson II, que pretendia dar continuidade aos estudos, abrangendo até a 6ª série. Ainda em 2003 foi lançada a missão Ribas, dedicada aos venezuelanos secundaristas. Por fim, foi construída a missão Sucre, fechando o ciclo completo com o acesso ao ensino superior, culminando na criação da UBV.
Mais recentes são as missões Amor Maior e Filhos da Venezuela – a primeira voltada para idosos e a segunda, de transferência de renda, a adolescentes grávidas, filhos menores de 17 anos em situação de pobreza e pessoas com deficiências sem limite de idade. O governo pretende ajudar 1.500.543 venezuelanos que nunca puderam pagar as parcelas do seguro social no Instituto Venezuelano de Previdência Social (IVSS, por sua sigla em espanhol). De acordo com o governo, 216.492 idosos já foram beneficiados, passando a receber mensalmente um salário mínimo (cerca de 800 reais). Trinta mil participantes da segunda missão passaram a receber entre 430 (200 reais) e 600 bolívares (280 reais) ao mês.
Críticas
O sucesso das missões é um dos alicerces da popularidade do presidente Hugo Chávez. A tal ponto que a oposição, antes raivosa crítica da iniciativa, agora ressalta que elas serão continuadas caso ganhe as eleições. Mas rechaça aspectos da empreitada. “As missões deveriam ser um compromisso com a transformação social, mas passaram a ser um instrumento da revolução chavista, do socialismo”, reclama Leopoldo Lopez, ex-prefeito de Chacao e membro do partido Vontade Popular. “É preciso governar para todos os venezuelanos, incluindo as camadas mais ricas, e não somente para um segmento da população”.
O coro oposicionista é reforçado por vozes de especialistas. Na opinião dos pesquisadores venezuelanos Yolanda D’Elia e Luis Francisco Cabezas, do Instituto Latino-americano de Pesquisas Sociais, “as missões deixaram de ser um dispositivo para enfrentar adversidades políticas e econômicas e se tornaram mecanismo de controle político e social para avançar nos propósitos da revolução”. Para eles, essa mudança formou um obstáculo para o aprofundamento e para a própria institucionalização do projeto, refletindo na qualidade e quantidade das missões.
Onde os adversários enxergam problema, contudo, o governo vê avanços. “As missões foram a forma de romper com o mecanismo de um Estado burocrático, vertical e distante do povo”, afirma Aristobulo Istúriz, vice-presidente da Assembleia Nacional e do PSUV. “Não se trata apenas de aplicar política social, mas de ajudar na auto-organização das pessoas e transformar suas comunidades em espaço de poder e participação.”
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