Eu tinha 19 anos, era poeta, estudante de sociologia e repórter quando um telegrama de uma agência nacional de notícias chegou à redação do jornal A Província do Pará, em Belém, onde eu então trabalhava, anunciando que o governo acabara de editar o AI-5. Um dos subscritores do documento era o ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, até pouco mais de dois anos antes governador do Pará, o único dos personagens daquele ato sinistro que eu conhecia pessoalmente. Senti de imediato o impacto. Para mim, que em março de 1964 tinha 14 anos, era a complementação do golpe de mão sobre o governo, acabando com a liberdade de que ainda desfrutávamos, pondo fim à esperança no futuro e à confiança no presente.

Quatro meses antes eu havia participado da ocupação da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Pará, na última grande irrupção de energia do ano que não terminaria. Varara madrugada datilografando um documento de avaliação da reforma educacional embutida no Acordo MEC-USAID, produzido por uma comissão paritária de professores e estudantes. Nesse documento, fazíamos sugestões, acreditando na promessa do governo Costa e Silva, de ouvir a comunidade acadêmica antes de implantar a reforma nos campi. Aqueles papéis, que me haviam consumido tantas horas de trabalho, foram recebidos por um assessor do general-presidente, que passava meteoricamente por Belém, e jogados sem cerimônia num cesto de lixo do próprio aeroporto, pouco depois. Nem chegaram ao destinatário. Aquele assessor sabia que aquela democracia era uma farsa à espera do momento adequado para revelar sua verdadeira face.

Quando li o texto do AI-5, no momento em que ele chegou à redação, percebi que uma etapa da minha vida acabara. Poucos dias depois viajava para São Paulo, para estudar e trabalhar no lugar que eu já então previa que seria o olho do furacão, pelos cinco anos seguintes. Não queria mais ficar à distância da história, na (àquela época) remota Amazônia. Minha geração nunca mais seria a mesma depois do AI-5, um concentrado de ditadura preparado sem escrúpulos, como admitiu Passarinho, ao assinar aquele terrível papel. Tivemos que crescer e resistir na fase mais negra da República brasileira, na qual, como no belo e triste poema de Bertolt Brecht, a inocência passou a ser sinônimo de insensibilidade, como nos momentos de grandes crises, quando a verdade se escreve na pedra – em geral, de uma lápide sem flores.

*Lúcio Flávio Pinto, 49 anos, é sociólogo e jornalista. Trabalhou nos principais órgãos da imprensa brasileira, por 17 anos em O Estado de S. Paulo. Foi professor universitário. Escreveu sete livros, todos sobre a Amazônia. Participou de várias outras obras coletivas. Edita em Belém, há 11 anos, o Jornal Pessoal, uma newsletter quinzenal que escreve sozinho, especializada em abordar assuntos vetados na grande imprensa.

 

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