Lélia Abramo
"Ao chegarmos, vimos a cidade em pé de guerra: soldados armados com fuzis, colocados a mais ou menos dois metros de distância uns dos outros…"
No final da década de 70, ao mesmo tempo em que se desenvolvia o movimento pela anistia, explodiam as greves dos metalúrgicos do ABC, que lutavam basicamente por melhorias salariais. Meu interesse foi despertado pela força com que esse movimento surgiu. Tratava-se de uma categoria de trabalhadores da indústria que, sendo melhor remunerada, tinha um nível de vida um pouco mais alto que outras categorias, o que lhe facultava maior consciência sobre as questões de direitos trabalhistas.
As greves dos trabalhadores haviam sido precedidas pelo movimento estudantil de 1977, por movimentos da Igreja Católica, como o da Justiça e Paz e os das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que lutavam pelos direitos humanos mas estavam também na base de muitos outros movimentos populares; além desses, vários movimentos populares como o Movimento contra a Carestia, o da Panela Vazia e o Movimento de Saúde da Zona Leste, cujos membros, especialmente na periferia, iam de porta em porta, procurando conscientizar a população para lutar por melhorias nas condições de vida e contra a repressão. Embora não houvesse de início muita coesão entre os vários movimentos, foi se desenvolvendo uma irresistível convergência em direção ao mesmo objetivo. As greves não eram impulsionadas somente pela luta reivindicatória de ordem salarial. O que me parece, embora não o pudesse confirmar, é que o impulso dos grevistas continha uma consciência política de classe.
No ano de 1978 deu-se a primeira grande greve dos metalúrgicos do ABC. Fui levada a acompanhar os movimentos grevistas pela convicção de que surgia alguma coisa de atípico, de único: um movimento operário contra um governo militar que lhe negava seus direitos e de cujo desafio tinha plena consciência. Esse desafio continha, sem dúvida, uma inclinação política, embora ainda não definida nem mesmo determinada.
Eu não pertencia a nenhuma corrente partidária nem a qualquer tipo de grupo político: era apenas uma atriz atenta às questões sociais e presidente de um sindicato que lutava pelos direitos trabalhistas de sua categoria. Somente isso e nada mais.
Segundo normas estatutárias, eu não podia tomar iniciativas de ordem política. Por essa razão assumi uma posição pessoal de aproximação com o líder Luiz Inácio da Silva, o Lula, sem pretender envolver o Sindicato dos Atores, por mim representado. Felizmente fui muito bem recebida por Devanir Ribeiro e Djalma Bom, também metalúrgicos e Jacó Bittar, do Sindicato dos Petroleiros. Eles estavam empenhados, nesse momento, na criação do Fundo de Greve para o qual também davam apoio várias outras categorias profissionais entre as quais a dos funcionários públicos, que faziam nesse momento sua primeira greve geral em São Paulo e que, principalmente por meio de seus setores mais combativos, o dos professores e o da saúde, deram importante contribuição na coleta de mantimentos e na venda de material para angariar dinheiro. Percebi a preocupação de Devanir, encarregado de organizar a distribuição de todo aquele material que ia sendo recebido. Devanir era muito jovem ainda para incumbir-se de tamanha tarefa. Permiti-me dar-lhe algumas sugestões, graças à minha experiência pessoal adquirida durante a guerra na Europa, quando eu fui classificada, por algum tempo, como “displaced person” (expressão usada naquela época para designar pessoas de várias nacionalidades, dispersas pela Europa)
No caso em questão – a distribuição de alimentos aos nossos grevistas metalúrgicos – tratava-se de arranjar algumas balanças grandes e outras menores, sacos de um quilo e outros maiores. Enchê-los, de acordo com o número de membros de cada família, com os alimentos básicos como arroz, feijão, batatas, óleo, açúcar, massas etc.
Foi a partir desse episódios que acabei entrando em contato com Lula e nos tornamos amigos. Daí em diante, onde havia metalúrgicos em movimento, lá estávamos nós artistas. Nosso sindicato foi um dos primeiros sindicatos não-operários a aproximar-se de Lula, juntamente com o Sindicato dos Jornalistas, na época dirigido por David de Moraes, e da oposição da Apeoesp (Associação dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo) que fora vitoriosa nas eleições, constituindo finalmente uma diretoria livre. Naquele momento eram pouquíssimos os sindicatos livres; a maior parte ainda era considerada “pelega”.
Em maio de 1980, pouco depois da fundação do PT, participamos do grande comício do 1o de maio, em São Bernardo do Campo. Essa manifestação foi memorável. O estádio de Vila Euclides havia sido interditado pelo governo para qualquer manifestação de trabalhadores; estava proibida a realização naquele recinto de qualquer comício ou reunião.
Nesse dia, nós da direção do SATED, rumamos logo cedo para São Bernardo do Campo empunhando cravos vermelhos: eram os cravos retirados de uma corbelha que eu recebera no dia anterior. E lá fomos nós com muita disposição para enfrentar o que desse e viesse. Ao chegarmos, vimos a cidade em pé de guerra: soldados armados com fuzis, colocados a mais ou menos dois metros de distância uns dos outros e segurando as correntes daqueles terríveis cães adestrados, dispostos a atacar se ordenados. Helicópteros, para nos assustar e dispersar, faziam vôos tão rasantes que dobravam a copa das árvores.
Enquanto os dirigentes sindicais reunidos com políticos da oposição, no interior da igreja central da cidade, discutiam sobre a melhor atitude a tomar, nós, milhares de pessoas que chegavam sem cessar, esperávamos lá fora, espalhados pela praça e ruas adjacentes. Finda a reunião dos líderes, fomos avisados de que marcharíamos em direção ao estádio de Vila Euclides apesar de todo aquele aparato bélico.
Eu estava no meio da multidão em frente à igreja quando um dos comandantes das tropas militares reconheceu-me, aproximou-se de mim e ofereceu-me refúgio no outro lado da praça cercada por soldados, dizendo-me que havia perigo de um próximo ataque no local onde nos encontrávamos. Agradeci a gentileza mas respondi que meu lugar era ao lado dos trabalhadores ameaçados. E lá fiquei.
Em fileiras compactas nos encaminhamos ao estádio, mais uma vez cantando a música de Geraldo Vandré, “Para não dizer que não falei de flores” (Caminhando). Os homens iam acompanhados de suas mulheres e carregando seus filhinhos nos ombros. Todos empunhando cravos de várias cores nas mãos e cantando. A idéia de levar flores nas mãos fazia parte do contexto histórico mundial, desde o final da década de 1960. E lá fomos nós, marchando e cantando, sob aquela ameaça de sermos atacados por armas verdadeiras, apesar dos cravos e cantorias.
A ameaça de um confronto, que teria resultado em verdadeiro massacre, durou várias horas. Felizmente, o comandante militar da praça, certamente por ordem superior, recuou, ordenando a retirada das tropas que, em poucos minutos, desapareceram. E então, sem termos interrompido nossa marcha e sempre cantando, entramos e retomamos posse do estádio que, a partir de então, se tornou um símbolo das reivindicações dos trabalhadores. Foi uma glória!
* Lélia Abramo, atriz, na época presidente do Sindicato dos Artistas de São Paulo (Sated).
Trechos extraídos do livro de Lélia Abramo, Vida e Arte e algumas novas lembranças por ela redigidas especialmente para esta comemoração no site da Fundação Perseu Abramo.