Clara Charf
Dizer que o AI-5 implantou a ditadura, permitiu as cassações e perseguições políticas não é exatamente a verdade.
O AI-5 institucionalizou covardemente o que o golpe militar de 1964 fez desde o início – suprimiu as liberdades públicas, implantou o terror político e ideológico e desencadeou a perseguição em massa.
O poder militar instituído pela força subverteu a ordem constitucional, prendeu, espancou, torturou milhares de cidadãos em todo o país que exigiam uma sociedade mais justa do ponto de vista econômico, político e social.
Os métodos de tortura como o pau-de-arara, os choques elétricos nos órgãos genitais, queimaduras, mergulhos forçados, espuma nos olhos, espancamento nos rins e abdômen eram processos rotineiros para obter confissões dos presos, utilizados pela polícia e os encarregados dos inquéritos policiais militares.
Operários, camponeses, líderes sindicais de todas as categorias, líderes políticos, artistas, jornalistas, músicos, militares que se opuseram ao golpe, intelectuais, cientistas, advogados, magistrados, mulheres presas e ultrajadas, religiosos de todos os credos considerados subversivos – contra todos a ditadura voltou seu ódio, atingindo também os familiares dos perseguidos. Além da cassação de direitos políticos de pessoas que exerceram a presidência da República, passando por pessoas em todo e qualquer cargo público.
Segundo os relatórios dos IPMs (Inquéritos Policiais Militares) foram atingidas só entre 1964 e 1965 mais de 5.000 pessoas.
Com o terror implantado, as forças populares recuaram, mas não capitularam. Foi se formando uma frente de resistência. Pouco a pouco sindicatos lutavam por eleições livres, camponeses levantavam as suas reivindicações e defendiam suas lideranças da perseguição policial, estudantes defendiam as organizações estudantis e o direito de participar da vida política do país, os intelectuais enfrentavam os inquéritos defendendo a liberdade cultural, mulheres se solidarizavam com os presos, perseguidos políticos e exilados, presos reagiam nos porões dos órgãos de repressão, setores da imprensa desmascaravam a ditadura.
Dizer que o AI-5 era uma resposta à violência das forças populares é esconder que a primeira grande violência foi o golpe militar de 1964 que atingiu a nação e procurava manter as aparências legais.
Diante do inconformismo do povo o AI-5 tirou a máscara definitivamente. Fez ruir por terra todos os resquícios da legalidade. Implantou o terror aberto. Não se podia falar, cantar, participar. Tentaram acorrentar até os pensamentos. Virou país de uma nota só.
Meus direitos políticos foram cassados logo no início do golpe militar, por dez anos. Nunca me disseram por quê. Logo depois do golpe, nossa casa foi invadida pela polícia. Escapamos a tempo. Mas o Marighella foi baleado no dia 9 de maio de 1964, dentro de uma sala cinema cheia de crianças, onde ele havia entrado para escapar da perseguição policial. Foi solto então graças à solidariedade e às denúncias da imprensa.
Com o AI-5 nossa vida ficou terrível. Como enfrentar o dia-a-dia, trabalhar, ver a família, locomover-se? Muito difícil. A clandestinidade foi total. Fotos de Marighella por toda parte, apresentado como inimigo público nº 1. A angústia de ver e saber das torturas e perseguições por todo o país. E o povo resistindo. Em 4 de novembro de 1969 Marighella foi assassinado mas se rebelou até o último dia do seu assassinato, contra o golpe militar de 1964 e todas as conseqüências que se abateram contra o povo brasileiro.
Foram anos de terror e de valor, de dor e sofrimentos, de vocações interrompidas, de vidas ceifadas, de medo e coragem. A luta e a solidariedade salvaram vidas e foram abrindo as veredas da liberdade.
Tributo a todos e em especial às mães, aos familiares dos perseguidos, pela dedicação e perseverança que muito contribuíram para o fim do regime militar, para a anistia e a reconquista da sociedade de direito e as liberdades democráticas.
*Profissão: cidadã militante, companheira de Carlos Marighella.