Por decisão unânime da Comissão de Anistia, José Anselmo dos Santos, constará nas páginas da história do Brasil como um agente infiltrado que contribuiu para a prisão, tortura e morte de mais de uma centena de militantes contrários à ditadura, entre eles sua companheira, a paraguaia Soledad Barret Viedma , grávida de sete meses de um filho dele. E não como um anistiado político, digno do perdão do Estado brasileiro e merecedor de reparação da ordem de R$ 100 mil, como ele requer, desde 2003.

Brasília – Por decisão unânime da Comissão de Anistia, proferida na noite desta terça (22), José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, constará nas páginas da história do Brasil como um agente infiltrado que contribuiu para a prisão, tortura e morte de mais de uma centena de militantes contrários à ditadura militar, entre eles sua companheira, a paraguaia Soledad Barret Viedma , grávida de sete meses de um filho dele. E não como um anistiado político, digno do pedido de perdão do Estado brasileiro e merecedor de reparação financeira da ordem de R$ 100 mil, como ele requer, desde 2003.

A Comissão da Anistia negou provimento ao seu pleito, no mais emblemático julgamento já realizado nos seus dez anos de trabalho. Em parecer histórico, o relator do processo, o ex-ministro dos Direitos Humanos Nilmário Miranda, destacou que, conforme a Constituição de 1988, a anistia só pode ser concedida aos perseguidos pelo regime, categoria em que Anselmo não se enquadra, por se tratar delator confesso que contribuiu com a prisão de 100 a 200 companheiros, muitos deles assinados nos porões da ditadura.

Segundo Miranda, a Constituição estabelece a anistia como “reparação às vítimas”, ao contrário do entendimento reafirmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 2010, com base em Lei de 1979, que a classifica como “esquecimento”, válida tanto para ações de militantes políticos quanto para crimes cometidos por agentes do estado. “Não foi uma contestação à decisão do STF. Minha interpretação sobre a anistia é pública e anterior”, explicou o ex-ministro à Carta Maior, ao final do julgamento.

O presidente da Comissão e secretário Nacional de Justiça, Paulo Abrão, reiterou, em plenário, o entendimento do relator. Segundo ele, são várias as leis brasileiras que tratam do conceito de anistia. “Após a Lei de 1979, já tivemos a Emenda 36, o Artigo 8ª das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988 e a Lei 10.559/2001, que regulamenta a Constituição. O conceito que trabalhamos aqui é o atual”, esclareceu.
Dúvida histórica

No seu parecer, Miranda reconheceu que o período em que o ex-cabo trabalhou para o regime é ainda controverso. Anselmo admitiu a colaboração com os militares a partir de 1971, quando teria sido preso e, conforme seu advogado, Luciano Blandy, obrigado a trabalhar para o então delegado chefe do DOPS de São Paulo, Sérgio Fleury. Depoimentos do próprio requerente, entretanto, colocam a versão sob suspeição. Em entrevista à revista Isto É, em 1985, ele admitiu que sua prisão foi uma farsa e que trabalhava para o regime por convicções ideológicas.

Outros colaboradores que se apresentaram durante o julgamento também atestaram que a contribuição dele com o regime é anterior ao golpe de 64. O jornalista da Folha de S. Paulo, Mário Magalhães, apresentou o áudio de uma entrevista que fez com o ex-delegado do DOPS do Rio de Janeiro, Cecil de Macedo Borer, em 2001, no qual o reconhecido agente da ditadura confirmava que Anselmo trabalhava para os militares desde o início da década. Dessa forma, a expulsão dele da Marinha, com base no Ato Institucional n 1 da Ditadura, fora apenas uma estratégia para que ele ganhasse a confiança dos grupos de esquerda que iria ajudar a dizimar no futuro.

O jornalista, historiador e ex-preso político Jarbas Marques acrescentou que, segundo denúncias ainda não comprovadas, o cabo já recebe uma pensão do governo, por meio de documentos falsos que lhe foram fornecidos pelo também ex-delegado do DOPS, Romeu Tuma.

O relator, porém, minimizou a persistência desta dúvida histórica para efeitos da sua decisão. Para ele, mesmo que Anselmo tenha sido perseguido pelo regime nos primeiros anos após o golpe, seu comportamento preponderante foi o de perseguidor de militantes. De acordo com Miranda, os autos mostram que ele trabalhou para Fleury como um legítimo agente do estado, morando em apartamento cedido pela ditadura e recebendo proventos por seus serviços. “Anistiá-lo seria um situação de tal forma esdrúxula, que não encontraria precedentes em outras comissões de outros países”, ponderou.

As vítimas de Anselmo

Também depuseram no julgamento duas viúvas de militantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) que, delatados por Anselmo, foram assassinados no episódio que ficou conhecido como massacre da Chácara de São Bento, na região metropolitana de Recife (PE), em 1973. O mesmo, inclusive, em que foi assassinada a companheira dele, grávida de sete meses.

Uma delas é Jenivalda Melo da Silva, viúva do ex-cabo José Manuel da Silva. O testemunho da viúva, corroborado por vídeos que ela fez posteriormente com testemunhas da ação, mostrou que Zé Manoel, como era conhecido, foi preso um dia antes do massacre, o que atesta a versão levantada pelos familiares de que a chacina não passou de uma armação para justificar a morte de seis militantes sob tortura.

Ela contou que, nos meses que antecederam a morte do marido, o Cabo Anselmo visitou sua casa por duas vezes. Na primeira, foi acompanhado de Soledad e perguntou se Jenivalda não conhecia um médico que pudesse fazer um aborto na esposa. “Eu não entendia muito bem o que ela falava, com aquele sotaque todo, mas senti que ela queria ter o filho”, relata. A segunda, foi sozinho e, na saída, me deu um beijo que me deixou muito intrigada. Não gostei daquele homem, mas só muitos anos depois soube que ele foi o responsável pela morte de meu marido”, disse a viúva à Carta Maior.

Jenivalda contribuiu também para desvelar uma outra face dos crimes de Anselmo: o sofrimento imputado aos que ficaram vivos. Já viúva, com três filhos para criar, ela foi perseguida pela ditadura, obrigada a depor por vários dias no DOPS, assistir torturas. Foi estuprada por quatro agentes, engravidou e praticou aborto, decisão muito difícil para uma pessoa religiosa como ela. Com tanto sofrimento, tentou suicídio oito vezes. “Todos os dias, meu pai nosso era para que o Cabo Anselmo fosse para o inferno. Se ele for anistiado, será a maior vergonha para este país”.

A outra depoente foi Maria das Graças Rodrigues do Amaral, viúva de Jarbas Pereira. Ela também confirmou que o marido fora preso antes do massacre e submetido a inúmeras torturas. Após o julgamento, respirou aliviada. “Estou muito, muito contente. Achei que não teria forças para dar meu depoimento e ajudar a impedir que este facínora se tornasse um anistiado político. Mas, felizmente, consegui”, comemorou.

Em defesa da “democracia”
O advogado de Anselmo, Luciano Blandy, baseou sua defesa no princípio democrático de que a lei vale para todos e que seu cliente, como perseguido pela ditadura, também merecia a anistia política, mesmo que, depois, segundo ele sob tortura, tenha sido coagido a se transformar em um agente infiltrado. “Faço esse pedido não só em nome de Anselmo, mas em nome da democracia conquistada naquele período pelos senhores, e que ä minha geração cabe perpetrar”, afirmou.

Segundo ele, Anselmo vive na mendicância, já que não tem sequer um documento de identidade. “Ele não veio ao julgamento por falta de dinheiro para a passagem. Eu mesmo tive que custear a minha”, disse ele à imprensa, após o julgamento. Conforme Blandy, Anselmo vive até hoje escondido, mudando com frequência de residência, por temer ser vítima de alguma vingança ou queima de arquivo. Seu contato com o cliente é raro e intermediado por amigos do ex-cabo.

Como esse julgamento foi de turma, composta por 12 membros, ainda cabe recurso ao pleno da Comissão da anistia, composta de 24. O advogado disse que ainda terá que entrar em contato com o cliente para saber se este é seu desejo.