Ana Maria Müller
No domingo passado atendi o chamado do telefone e, do outro lado, uma amiga querida me pergunta: Onde você estava no dia do AI-5?
Eu?
Em 1968 era estudante de Direito e trabalhava como secretária da diretoria no jornal Correio da Manhã, no Rio de Janeiro.
Tudo efervescia naquele ano mágico. Nós, estudantes, achávamos que estávamos contribuindo, definitivamente para modificar este país. Queríamos um país livre, igualitário, democrático. Ensino público e gratuito. Distribuição de terras com uma reforma agrária justa. Estávamos prontos para tomar o poder…
A Faculdade que cursava – Direito da Cândido Mendes – era localizada num ponto bastante central da cidade, onde se desenrolavam as manifestações de maior porte do movimento estudantil.
Arthur Müller, vice-presidente do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito Cândido Mendes, estava preso desde o Congresso de Ibiúna e era meu companheiro.
O Correio da Manhã possuía em seu quadro de redação editorialistas, jornalistas e intelectuais da maior qualidade: Arthur Poerner, Franklin de Oliveira, Otto Maria Carpeaux, Edmundo Muniz, Peri Cota, Paulo Francis, entre outros, que faziam com que o jornal fosse, naquele momento, o símbolo de resistência ao golpe de 1964 (ao qual dera apoio na época e depois se arrependera).
Sua presidente – D. Niomar Muniz Sodré Bittencourt – marcou, definitivamente, minha vida pelo seu caráter, inteligência, determinação, coragem e, sobretudo, pela forma como combinava isso tudo com sua grande feminilidade e sedução.
Nos dias anteriores ao AI-5, espalhou-se a notícia de que seria julgado um habeas-corpus em favor dos presos políticos de Ibiúna, que se encontravam em diversos estados e D. Niomar colocou o telex do jornal à disposição, para que fosse incluído o nome do meu companheiro.
A família mobilizou-se e conseguiram, incluído o seu nome, o alvará de soltura, cumprido no dia 12 de dezembro de 1968. Uma foto foi inserida num livro intitulado Um Rio em 68, publicado pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro em 1988, retratando o momento da liberdade do Arthur. Na foto ele está olhando para o lado. O que acontecia é que o Mauro Borges, policial do DOPS, estava dando um "até amanhã" e nós pensando que era só provocação.
Daquele momento, só fui avistar o Arthur algum tempo depois, por questão de segurança.
No dia seguinte – 13 de dezembro de 1968 –, fui trabalhar no jornal.
À tarde (acho que no final da tarde), todos estávamos parados diante da televisão que existia na redação, escutando o texto do AI-5. Foi um grande rebuliço no jornal. Correria por toda a parte. Pessoas que fatalmente seriam visadas pela repressão política deixavam apressadamente o jornal para colocar-se em segurança.
Já à noite, chegam policiais do DOPS com mandado de prisão de alguns jornalistas. D. Niomar desce ao saguão e diz ao policiais que caso tivessem que prender alguém que a prendessem, pois era responsável por tudo no jornal. Em meio do empurra-empurra no saguão, veio uma rajada de metralhadora disparada contra o teto por um policial de nome Pancho, o que provocou um tremendo tumulto e amplas manifestações de apoio ao jornal vindas de todas as partes do mundo.
Não foi dessa vez que prenderam D. Niomar, mas foi a partir desse episódio que ela manteve uma luta sem trégua contra a ditadura militar, que a levou ao cárcere no ano seguinte e ao fechamento do jornal poucos anos depois.
Cheguei em casa tarde da noite. Na portaria me aguardava um amigo, muito aflito, dizendo que era preciso desfazer-se de alguns livros e colocar um mimeógrafo em lugar seguro.
Foi duro desfazer-se de livros e, não poucos, preciosos. Mesmo assim, demos conta (será?) da missão.
Depois desse momento, o nosso dia-a-dia ficou mais pesado e menos espontâneo.
Me lembro que um pouco mais adiante, na retomada do ano de 1969, a barra já estava mais pesada e, mesmo na nossa Faculdade, foram inúmeras as vezes em que nós do diretório fomos convidados a depor.
Bastava aborrecer mais um pouco professores que não comungavam dos nossos ideais e, coincidentemente, éramos chamados a depor.
A própria Faculdade chegou a ser invadida pela Polícia Militar, logo no início do ano.
A partir do primeiro quadrimestre de 1969 o cerco apertou. Os amigos rarearam: alguns foram para clandestinidade, outros já começaram a ser presos e torturados e aprendemos a conviver com a preocupação permanente com a segurança.
Qualquer descuido poderia ser fatal. As notícias que chegavam eram terríveis.
Na verdade o AI-5 preparou a chegada de uma era de terror.
Não dá para sentir que passaram 30 anos. Não dá….
A Nação, mesmo com a Anistia, não conseguiu, ainda, a pacificação. Na verdade, a geração punida permanece punida. Até mesmo no tratamento, na referência, na falta de respeito como os atingidos são tratados. É só fazer um retrospecto para ver como são feitas as abordagens em torno dos "meio-anistiados", dos familiares dos mortos políticos, dos familiares dos desaparecidos políticos, dos atingidos de um modo geral.
O perdão não foi, ainda, aquele perdão de mãe que não põe senão.
O perdão de 1979 foi aquele do patrão que perdeu na justiça e foi obrigado a reintegrar o empregado que, mesmo tendo reconhecido o seu direito, passa a ser vitimado por um tratamento desrespeitoso..
Acredito que só a certeza de que conseguiremos modificar essa situação, nos trouxe até aqui.
O juiz Garzón, da Espanha, nos dá um exemplo de que é possível continuar acreditando. Mesmo 30 anos depois…
*Advogada no Rio de Janeiro. Fundadora do Comitê Brasileiro pela Anistia/RJ; fundadora do Partido dos Trabalhadores/RJ do Rio de Janeiro; conselheira da Ordem dos Advogados do Brasil/RJ. Durante vários anos foi membro da Comissão de Direitos Humanos e Comissão de Mulheres da OAB-RJ.