"..eu estava, além das atividades de solidariedade à greve, gravando uma novela na TV Bandeirantes, e filmando Eles não usam Black-Tie, tudo ao mesmo tempo."

Por Bete Mendes

Como grande parte da classe artística e intelectual que se solidarizou com as greves do ABC, estive diretamente na região e lembro de situações particulares, vividas na época, que vale a pena contar.

A primeira que me vem à memória é a do show fantástico em que fiz parte da comissão de organização – e também apresentei – no galpão dos antigos estúdios da VERA CRUZ, com mais de mil pessoas assistindo e o maior número de compositores e intérpretes da música popular brasileira, artistas e intelectuais no palco, junto aos companheiros do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Esse show, em sua singeleza, expressa bem o compromisso com o movimento.

Havia, naturalmente, uma ordem para a entrada no palco, dos convidados a participarem do show. Antes de se programar o espetáculo, no qual os artistas se apresentaram gratuitamente, contribuindo desde a divulgação do movimento para a sociedade brasileira e, principalmente, para o Fundo de Greve foi feito um comunicado da ordem de apresentação. Por esta ordem, entrariam no final do evento, que durou mais de 4 horas, Milton Nascimento, Chico Buarque, e, juntos, João Bosco e Elis Regina. O fato é que Elis, que chegou bem cedo como todos, estava doente, com febre de quase 40 graus, e, depois de esperar algum tempo, em acomodações improvisadas – o que não era surpresa para ela e para ninguém da classe artística acostumada a participar dos movimentos populares – não agüentando a febre que lhe minava as forças, pediu que a secretária que a acompanhava me chamasse no palco, para antecipar sua entrada.

Lembro que, não apenas não fui gentil com ela, como, sem qualquer palavra de estímulo ou agradecimento por seu esforço especial, lhe disse que não havia maneira de mudar a ordem e que, ou ela esperava a sua hora ou ia embora. Elis aceitou a decisão e o final do show foi uma glória, com ela e os citados cantando, juntos, Os Bóias Frias, Na saída, essa maravilhosa companheira ainda me deu um presente, ao dizer, me abraçando, que eu tinha razão, que aquela era mesmo a hora certa dela se apresentar. Valeu, Elis.

A segunda é curiosa: eu estava, além das atividades de solidariedade à greve, gravando uma novela na TV Bandeirantes, e filmando Eles não usam Black-Tie, tudo ao mesmo tempo. E, na coleta de contribuições para o Fundo de Greve, além de fazer a reportagem diária, nos dois locais de trabalho, do que havia acontecido no dia, madrugada ou noite anterior, andava feito uma sacoleira, com camisetas, adesivos, jornais do Sindicato ou o que aparecesse para vender.

Em uma dessas situações na TV Bandeirantes estávamos em uma roda, eu e toda a equipe técnica (câmeras, sonoplastas, operadores de vídeo) mais a equipe da novela (contra-regras, assistentes de estúdio etc.), fazendo um relato. Cabe aqui dizer que o termo relato é mal aplicado porque, além deles virem ávidos por notícias e contribuírem sempre, cada vez se gerava um debate, e um ou outro começava a discutir sua relação de trabalho com a emissora, e alguém se apresentava depreciando a greve, e dizia que os metalúrgicos eram a "elite brasileira, enfim, isso tudo era muito bom, porque havia discussão sobre as empresas e os assalariados. Voltando ao caso: estávamos em um desses debates quando, de repente, percebi que os olhares se desviavam de mim e todos se calavam. Henrique Martins, que dirigia a novela e é uma pessoa muito bem humorada, de pé, atrás do grupo, aplaude e me diz: "…será que dá para interromper a assembléia pra gente gravar mais um capítulo da novelinha que estamos fazendo?"… Esta lembrança me faz muito bem pois mostra que não houve a mínima censura à minha participação no movimento, por parte do diretor da novela, pelo menos. Valeu, Henrique Martins.

E a última, que me marcou muito, foi em um dos comícios do Estádio da Vila Euclides, lotado de trabalhadores e suas famílias. Lula estava usando o microfone quando o exército e a polícia militar de São Paulo, usando helicópteros, começaram a sobrevoar o Estádio, em altitude muito baixa, com os militares apontando as metralhadoras em direção ao povo. Antes que o pânico ou a revolta tomassem conta da massa, Lula, com liderança firme, baixou o tom de voz e disse: "…Companheiros, é isto mesmo que eles querem, mas nós não vamos sair daqui; vamos fazer silêncio e esperar até eles cansarem ou o combustível acabar…". Eu, que estava próxima a ele e que começava a me assustar com o que pudesse acontecer, passei do receio para a admiração, e desta para a alegria, pois todos entenderam imediatamente a palavra de ordem, ficaram quietos, e eram mais de 5 mil pessoas, de todas as idades, com crianças, mulheres, famílias inteiras, todos parados e calados, até que, depois de muitas voltas, os helicópteros foram embora, voltaram para o quartel, frustrando-se assim mais uma das manobras usadas para acabar com a greve. Ainda bem, pois teria sido uma catástrofe, se eles tivessem tido êxito. Valeu, Lula.

Rio de Janeiro, 24/04/2000

* Bete Mendes, atriz e atualmente presidente da Funarj (Fundação de Arte do Rio de Janeiro)

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