Semana marcante
A semana passada, com protestos gigantescos no primeiro de maio e com eleições grandemente significativas no domingo, cujos resultados ainda se vão desdobrar, foi profundamente marcante para as nações da Europa. Marcante, sim, mas ainda não reveladora de caminhos novos, claros e convincentes. Evidenciou-se o que já se sabia: o repúdio forte à política neoliberal de austeridade, que sobrecarrega o povo com enormes sacrifícios para que as dívidas sejam pagas. Mas que dívidas? Ainda são válidas? Quem vai pagá-las? O capital, taxado para este fim ou levando o calote? Será? Há um risco de impasse e desmoronamento no ar. A perspectiva do vitorioso socialista francês, François Hollande, não é nada fácil. As da nação grega mais difíceis ainda. E o povo espanhol? E os italianos e os portugueses?
Não entro na discussão dos economistas, primeiro porque não tenho o saber necessário; segundo porque acho que quase todos, mesmo os keynesianos que condenam a austeridade liberal e advogam a retomada do crescimento, quase todos acabam favorecendo o capital, porque pensam sob a lógica do capitalismo. Não obstante, se François Hollande tiver condições de fazer o que prometeu, reduzir os grandes salários públicos (a partir do dele) e taxar fortemente os ganhos de capital, na linha da velha socialdemocracia, será efetivamente um grande avanço para uma mudança mais profunda, uma a mudança de lógica mais adiante.
Haveria outra lógica? Eu penso na lógica política, que passa o comando da economia para a política, isto é, do mercado para o Estado. No Brasil (e na China, claro) isso não é tão difícil porque o sistema financeiro é bastante estatizado, nosso governo tem condições de travar uma guerra dos juros e ganhar, aumentando a fatia estatizada se necessário. O governo pode manter estável o preço da energia do petróleo mesmo com a disparada das cotações internacionais; não tem a mesma condição na energia elétrica e nas comunicações porque foram muito privatizadas, mas tem meios de ação porque se desvencilhou do neoliberalismo. Na Europa tudo isso é muito mais difícil.
Difícil mas não impossível; a tradição da socialdemocracia tão exitosa há meio século deve estar ainda presente em memórias nacionais. A França exerce com certeza uma liderança forte no continente, especialmente na Europa latina. A Espanha anuncia a estatização de um dos seus grandes bancos; é uma decisão da mais alta relevância, um gesto político de um governo conservador destinado a causar impacto.
A política, tão generalizadamente condenada por seus desencontros com a ética, é a única via de solução dessas grandes crises estruturais. A Grécia está em vias de recorrer a uma nova eleição para desatar o impasse; melhor teria sido fazer o plebiscito proposto há meses por Papandreu, tão unanime e fortemente criticado pela mídia do mundo, como gesto de esperteza populista. Se tivesse sido feito já teria desatado o nó e mostrado o caminho a outros povos asfixiados. A tese de que o povo não sabe votar, não sabe escolher o que é melhor para a nação, é uma velha tese positivista e elitista dos donos do capital interessados em manter a lógica do seu próprio enriquecimento. Ela pode ter ainda alguma vigência mas cada vez mais vai precisar de governos de força, não democráticos. O próprio governo grego de hoje é desta natureza, imposto pelo sistema financeiro coordenado pelo FMI. Exatamente como o governo italiano. Não podem ter futuro nem levar à superação do impasse, por falta de legitimidade.
A lógica do capital gerou a tecnologia da inovação pela inovação, para manter o mercado em expansão e o giro capitalista em espiral. De tempos em tempos essa espiral explode numa crise. Ocorre que essa mesma tecnologia alimentada pelo capital criou instrumentos de conscientização e mobilização política, através das redes sociais, antes impensáveis, e hoje a mídia tradicional vai perdendo a hegemonia na formação da opinião pública segundo a velha lógica do capital.
O mundo entra numa encruzilhada de reformulação política. E a solução dessas crises econômicas pela via democrática pode ensejar, paralelamente, um vasto movimento de renovação, legitimação e moralização da política através da institucionalização da participação popular nas grandes decisões. É importante olhar com atenção para a Grécia neste momento; como também para aquela surpreendente e pouco noticiada ilha escandinava que se chama Islândia, que repudiou sua dívida através de um plebiscito. Olha aí.
*Roberto Saturnino Braga, ex-senador (PT/RJ), autor de O curso das idéias, editado pela EFPA e membro do Conselho Curador da FPA.
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