Aquela sexta-feira 13 de dezembro de 1968 foi tensa. O clima vinha nervoso havia alguns dias e pela manhã recebi um telefonema do Jeremias (nome de guerra) que trabalhava na sucursal do Jornal do Brasil, ali na avenida São Luís. Marcava um almoço no Chá Mon – na Galeria Metrópole, o primeiro self service de São Paulo. Com outros companheiros da Ala Vermelha, formávamos a base de jornalistas, organismo do qual eu começava a ser deslocado para atuar no "setor militar" (unidades de combate).

Aquela sexta-feira 13 de dezembro de 1968 foi tensa. O clima vinha nervoso havia alguns dias e pela manhã recebi um telefonema do Jeremias (nome de guerra) que trabalhava na sucursal do Jornal do Brasil, ali na avenida São Luís. Marcava um almoço no Chá Mon – na Galeria Metrópole, o primeiro self service de São Paulo. Com outros companheiros da Ala Vermelha, formávamos a base de jornalistas, organismo do qual eu começava a ser deslocado para atuar no "setor militar" (unidades de combate).

No almoço, Jeremias passou algumas informações que davam conta da prevalência das teses dos setores mais duros do regime: era iminente um fechamento maior, com intervenção no Legislativo, suspensão das garantias individuais que haviam sobrevivido à razia de 1964 e prisões. Um novo ato institucional seria anunciado nas próximas horas. Eu deveria repassar essas informações à direção da organização, com a qual teria um ponto no final da tarde, e deveríamos reforçar a segurança nas próximas horas. Nada de ficar circulando, dando bandeira. Confirmamos nossa reunião para a manhã seguinte. Voltei ao meu trabalho na Medisa – uma editora de revistas técnicas –, na Barão de Itapetininga. A tarde pareceu se arrastar, infinita, entre o rádio de pilha, os comentários dos companheiros da redação (todos de esquerda) e a revisão de textos sobre medicina e medicamentos.

Nas ruas do Centro, as pessoas caminhavam como bons transeuntes. Será? Vá lá saber o que se passa nos corações e mentes dos aparentemente pacatos transeuntes. Eletricidade no ar, ou era apenas o meu espírito?

Por fim, o ponto na Livraria Ler, atrás do Caetano de Campos. Seguimos para um boteco próximo à Vieira de Carvalho onde pedi uma dose de Otard Dupuy. O companheiro de direção que foi ao encontro, creio ter sido o Machado. Na verdade, apenas confirmamos um ao outro informações que já trazíamos, mas que não eram públicas nem oficiais. Não éramos inocentes: sabíamos que estava fora do nosso alcance reverter de imediato o quadro que se armava. Sabíamos também que aquelas divergências (qualquer que fosse seu desfecho) não produziriam no poder qualquer aliado – sequer pontual – para a nossa causa. A ditadura radicalizava. De certo modo, era o esperado, mesmo antes dos episódios que envolviam o Congresso Nacional. Era intrínseco à lógica do projeto dos golpistas. Inscrevia-se em sua escalada. Tratava-se antes de evitar quedas, proteger os militantes e a organização, e tirar algumas orientações políticas gerais para a ação junto aos movimentos onde atuávamos. E depois, bem… depois, prosseguir.

Coberto pelo álibi que me conferia a condição de jornalista, circulei por lugares "manjados" pela repressão, inclusive a Maria Antônia. Cruzei caras conhecidas, mas não encontrei os militantes das outras organizações de esquerda com os quais mantinha contatos. Evitei procurá-los em suas casas.

Nas ruas, os transeuntes caminhavam, os carros transitavam, a vida ia indo, mas não me parecia que essas coisas acontecessem normalmente.

Conforme combinara com Machado, fui dormir no apartamento dos meus pais, na Luís Coelho, em frente ao que hoje é o Center 3.

Lá ouvi e vi o locutor, acompanhado do ministro da Justiça Gama e Silva, anunciar as medidas: "… após ter ouvido os membros do Conselho de Segurança Nacional, resolveu baixar um ato institucional que tem como finalidade fundamental preservar a revolução de março de 1964 …" Condensavam-se no anúncio oficial os motivos de nossas preocupações, as informações do Jeremias batiam.

(Usei recentemente a imagem e o áudio dessa proclamação num vídeo: Viva o povo brasileiro, 1994. Ainda me perturba, ainda me deixa indignado.)

À noite, não consegui dormir. Precisava trocar idéias, discutir, estar com os meus pares. Conspirar.

Mas tinha que esperar a reunião do dia seguinte. Fora o combinado. Passei a noite dividido entre pensamentos, anotações para a reunião da manhã de sábado (nas quais pus fogo durante a madrugada) e desenhos com grafite, lápis de cor, nanquim e outras tintas à base de água. Folheei livros de história da arte.

Às 7 horas em ponto desci, tomei um café na esquina da Luís Coelho com a Augusta, e na Paulista o ônibus Hospital das Clínicas-Cambuci, rumo à casa do Nei. Este fora convocado momentos antes pelo jornal onde cobria a área de política e tivemos que mudar o local do encontro.

As 11 horas da manhã nos encontrou sentados no gramado do monumento à Independência, às "margens plácidas" do Ipiranga. Éramos uns seis ou oito, entre jornalistas e membros da Direção Regional. A idades variavam entre 23 e 27 anos. Lembro nitidamente das expressões nos rostos de Pedro, Tânia e Jeremias: traduziam nossos temores e nossas esperanças. O que derivava do Ato era óbvio. O que nos esperava depois do Ato era ainda mais óbvio. Nossos esforços (e não apenas da Ala Vermelha) de travar uma luta de massas contra o regime e o sistema sofreria um corte, mal começavam a florescer algumas dessas iniciativas. Era preciso recuar as lideranças que emergiam nas lutas de organização da oposição dos bancários, dos jornalistas, do movimento estudantil (universitário e secundarista), entre os artistas e intelectuais e outros setores médios urbanos. Novas levas de companheiros desses setores passavam à clandestinidade. À mais absoluta clandestinidade. Do nosso pequeno setor operário, a maioria já estava clandestina desde 1964. Virava-se mais uma página. Dispersamo-nos cheios de maus presságios, mas decididos a construir novos caminhos. Definíramos algumas tarefas mais urgentes, marcáramos pontos, combináramos reuniões.

Em todo país, milhares de pequenas reuniões semelhantes à nossa devem ter acontecido naquele dia ou nos subseqüentes. Como nós, milhares de militantes das diversas tendências reafirmaram seus compromissos.

Peguei uma carona com Pedro e Tânia num fusca verde escuro. Falamos do "setor militar" da organização e de medidas a serem encaminhadas no que dizia respeito à unidade de combate. A partir daquele momento, esse setor passaria a ocupar cada vez mais as nossas energias – resultado de nossas análises políticas, nosso instrumental teórico e, até mesmo, pela necessidade de mantermos uma pesada estrutura clandestina. Deixaram-me na avenida Paulista, no meio do caminho. Despedimo-nos. Acompanhava-nos a sensação – que desde então seria cada vez mais intensa e recorrente – de que poderia ser a última vez que nos encontrávamos.

Sentei-me numa mesa na calçada do Fasano, no Conjunto Nacional, e pedi um sorvete de creme e chocolate, um misto quente em pão de forma e uma água. O garçom me olhou apenas estranhando a composição do pedido, enquanto eu olhava os transeuntes e os carros como se os estranhasse. Havia algum sol e brisa. Depois, fui cumprir minhas tarefas – enfim, a luta sempre continua.

No final da tarde, voltei para o quarto-e-sala onde morava. Li jornais do Rio e de São Paulo. Queimei uns poucos papéis, mexi em pastas onde guardava desenhos de amigos, pus na vitrola portátil sucessivos LPs e me servi de conhaque. Tomei um banho para esperar a namorada. Já me sentia pronto para participar do novo capítulo que se abria.

No som, Janis Joplin insistia: "no, no, no, no, no, no, no, no, no, no, don’t you cry … ".

Começava uma longa noite. Uma longa agonia.

Nela imergíamos todos. De cabeça erguida.
 

*Tem 53 anos, é jornalista e escritor. Editor da Revista Sem Terra, do MST, é também membro do conselho de redação da revista Teoria & Debate. Militou na Ala Vermelha em São Paulo, e esteve preso de agosto de 1969 até outubro de 1974.

 

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